quinta-feira, 31 de outubro de 2019

PÉ NA BUNDA À HUNGARA


A vida de jornalista é sempre sujeita a sobressaltos. As demissões, justificáveis ou não, fazem parte da vida profissional de todos, e acabam sendo aceitas como algo inevitável. Eu próprio fui vítima de duas rasteiras inesquecíveis, e vivi e ouvi falar de outras tantas.
Mas os húngaros superaram tudo que eu já havia visto. Numa excelente reportagem de Rafael Cariello publicada na revista Piauí de abril de 2017 sobre as tropelias do governo direitista liderado pelo primeiro ministro Viktor Orbán, aquele que fechou com arame farpado as fronteiras do país para impedir a entrada de refugiados, Cariello narra, com riqueza de detalhes, o fim do jornal Népzabadság (A Liberdade do Povo).
Do fim do domínio comunista até 2006,  quando a Hungria foi governada pelos socialistas, o Népzabadság, de Budapeste,  era o mais importante jornal do país. Mas quando o governo foi derrotado pelo partido Fidesz, numa eleição marcada por denúncias de corrupção e irresponsabilidade fiscal dos socialistas, os novos dirigentes iniciaram uma campanha implacável contra todos os jornais e canais de tevê que ousavam criticá-los. 
Orbán, aluno aplicado do russo Vladimir Pútin e do turco Recep Erdogan, começou cortando toda a verba publicitária oficial e das estatais. Empresários amigos dos novos dirigentes passaram a receber privilégios, como contratos para obras em licitações duvidosas, e também eles direcionaram a publicidade para veículos simpáticos ao novo regime.
Abalado pela natural queda de circulação resultante da concorrência da mídia digital e pela perda de receita, o Népzabadság encolheu e passou a demitir jornalistas. Em 2014 a empresa que o publicava foi vendida para um especulador austríaco.  Dois anos depois começaram as especulações de que o novo dono negociava a sua venda. A angústia dos jornalistas e gráficos foi aliviada pela notícia de que uma nova redação estava sendo construída do outro lado do rio Danúbio, em Buda, e uma nova fase estava começando.
No dia 7 de outubro de 2016, uma sexta-feira,  depois do fechamento, os jornalistas foram instruídos a colocarem suas coisas em caixas numeradas, pois no dia seguinte uma empresa de mudanças levaria tudo para a nova redação, onde seria produzida, no domingo, a edição de segunda-feira.
No sábado mensagens começaram a circular entre os jornalistas com a informação de que era tudo mentira: o jornal não voltaria mais a ser publicado.
Alguns funcionários desinformados chegaram a ir até o novo prédio para trabalhar, mas foram barrados por seguranças.
O outrora crítico jornal húngaro havia sido vendido e, quando voltou a circular, mudou de lado - passou a apoiar o governo.  
Aos jornalistas restou o desemprego ou mudar de profissão.

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