sábado, 24 de agosto de 2013

TRATAMENTO DOS ESGOTOS: UM DIREITO HUMANO ESQUECIDO

Morar numa cidade do litoral gaúcho é muito bom: ar puro, silêncio, segurança,  trânsito descomplicado, vida pacata do interior. Com a internet e a tevê por satélite, não há desculpa para  se desconectar do mundo. E se der vontade de ir a um cinema, um show, uma peça de teatro ou ao shopping, Porto Alegre não fica longe.
O que incomoda, mesmo, é quando chove por alguns dias. Em qualquer época do ano, o solo arenoso enxarca, as ruas ficam alagadas por falta de escoamento. O ar se torna empestado, mesmo nas cidades que têm tratamento do esgoto cloacal, como Tramandaí, Torres e Capão da Canoa.  Nas demais cidades, onde não há esgoto tratado, as fossas transbordam e a água contaminada acumulada nas sarjetas se torna um problema de saúde pública.  De sul a norte, do Chuí ao Mampituba, de Quintão a Xangrilá, balneários charmosos ou modestos viajam no tempo até à época da Idade Média,  quando a falta de saneamento causava epidemias de doenças contagiosas.
Reconhecido como um direito humano universal, da mesma forma que a água potável e o recolhimento de lixo, o esgoto cloacal tratado, assim como o pluvial, deveria ser considerado uma prioridade pelos prefeitos municipais, vereadores, governadores, deputados e senadores. Mas não é, por dois motivos: o político - asfaltar uma rua dá mais dividendos eleitorais do que colocar canos debaixo da terra - e o econômico: sai muito caro construir redes de esgotos e estações de tratamento, e sempre há outras coisas mais urgentes e importantes - na ótica deles - para fazer.
Numa região em que uma parte dos proprietários de imóveis são veranistas e onde os moradores na maioria têm baixa renda, os problemas causados pelo sistema de fossas sépticas se agravam devido à precariedade das instalações e a falta de cuidados de manutenção. Os veranistas, que ocupam as suas casas apenas no verão e em fins de semana, não acham necessário mandar limpar anualmente as suas fossas, como é recomendado, e muitos moradores não têm condições de pagar pelo menos  R$ 400,00 pelo recolhimento dos dejetos em caminhões-tanque e o seu transporte até estações de tratamento da Corsan.  Até mesmo o uso de produtos biológicos para a limpeza natural dos dejetos, vendidos a R$ 20,00 em lojas agropecuárias, é considerado um luxo. O jeito é tapar o nariz, esperar a chuva passar e a água escoar.
Nas vilas da periferia, onde não há nem ao menos calçamento, a situação é dramática devido à precariedade das moradias, muitas delas de madeira, enfiadas em áreas alagadiças. As doenças causadas pelo frio e a umidade são comuns durante os meses de frio, vento e chuva.
Nos longos invernos, é dura a realidade do litoral do Rio Grande do Sul, uma faixa de areia de 600 quilômetros entre lagoas e o mar. 
Bem diferente do verão, quando há trabalho para uns, lazer para outros e sol para todos.



quinta-feira, 22 de agosto de 2013

O CARRO DO GANDOLFO


O sonho de consumo do Gandolfo não era uma Ferrari, uma BMW, nem mesmo um carrão antigo de colecionador. Ele queria mesmo era ter um carro fúnebre como o da foto: preto, com colunatas douradas, para passear pelas ruas de Porto Alegre e abanar alegremente para os passantes atônitos.
O jornalista Francisco Gandolfo era o setorista do obituário do Correio do Povo dos anos 70. De temperamento alegre e extrovertido, adorava a sua área de atividade. Chegava à redação cedo, por volta das sete horas da manhã, e sempre arrancava gargalhadas dos poucos colegas madrugadores com  seus comentários.
Metódico, telefonava para os cemitérios para saber se algum personagem conhecido estava sendo velado ou seria enterrado naquele dia. Mas mesmo se não tivesse, ele ia até as capelas mortuárias, se apresentava para os familiares e anotava os dados do morto para publicar as notas - todo jornal que se preze, no mundo inteiro, tem um bom obituário, invariavelmente uma das suas páginas mais lidas.
O repórter tinha um lema que sintetizava o seu espírito galhofeiro e o rigor profissional:
- Faleceu? Gandolfo deu!



domingo, 4 de agosto de 2013

UM OUTRO OLHAR SOBRE MAQUIAVEL




"Nenhum epitáfio pode fazer juz a tão grande nome"






(Inscrição na lápide de Maquiavel, nascido em Florença em 1469 e falecido na mesma cidade em 1527)



Nicolau Maquiavel se tornou conhecido pelo seu primeiro livro, O Príncipe, no qual derruba os biombos da hipocrisia ao defender que um governante, para chegar ao poder e se manter nele, deve, às vezes, abrir mão de seus princípios éticos e morais, e recorrer até mesmo a meios cruéis, como a eliminação física de seus inimigos. Todos os políticos faziam isso, mas sempre havia justificativas nobres. Nenhum filósofo ou historiador tinha coragem de admití-lo abertamente. Por causa disso, a má fama de Maquiavel chegou a tal ponto que ele  gerou um adjetivo: maquiavélico,  sinônimo de dissimulado, sem escrúpulos, enganador.  
 Mas este é apenas um aspecto do grande pensador da Renascença, um homem de educação refinada que dos 29 aos 41 anos de idade integrou a cúpula da administração de Florença como diplomata e conselheiro político, até o principado ser invadido por tropas espanholas aliadas ao papa que recolocaram a família Médici no poder.  
 Quentin Skinner, professor de História Moderna da Universidade de Cambridge, Inglaterra, lança um novo olhar sobre a obra do florentino em Maquiavel (editora LPM, 119 páginas). Analisa, com equilíbrio e riqueza de detalhes, cada um de seus três livros: O Príncipe, escrito na tentativa de mostrar aos Médici  que tinha conhecimentos sobre a arte de governar para justificar sua volta ao emprego, depois de ter sido preso e demitido; 
Discursos, um estudo focado na história de Roma, sua origem, apogeu e decadência, e A História de Florença, escrito anos mais tarde por encomenda dos Médici, que o perdoaram parcialmente. Neste, o tema dominante é a corrupção: descreve como ela tomou conta de Florença, estrangulou sua liberdade e conduziu o principado à tirania e à desgraça.  
 Maquiavel passou o resto da vida estudando história e escrevendo. Em sua obra literária analisa a sociedade do início do século 16, marcada pela violência, a corrupção e a dissolução moral, da qual nem os papas estavam livres - muito pelo contrário.
O historiador  inglês tem o cuidado de contextualizar a época, discorrendo sobre aquela fase da história em que a Europa iniciava o Renascimento depois da queda do Império Romano e séculos de obscurantismo medieval.
A Itália era composta de principados e pequenos reinos que ora guerreavam entre si, ora enfrentavam poderosos inimigos externos como a França e a Espanha e o próprio Papado, que governava Roma e boa parte do território italiano.
Para Maquiavel, só com boas leis e governantes corretos, que priorizassem o bem comum  e não os seus interesses pessoais, um país poderia ser próspero e independente. Se, ao contrário, os políticos no poder cedessem às suas ambições, favorecendo as facções a que pertenciam e se aproveitando dos cargos para enriquecer, a decadência e a ruína seriam certas.

As lições de Maquiavel

 Conselhos aos príncipes:
 - As principais fundações de todos os estados são boas leis e bons exércitos. Aliás, bons exércitos são ainda mais importantes que boas leis.
- Um príncipe sábio será guiado acima de tudo pelos ditames da necessidade: se deseja manter o poder, ele deve  estar sempre preparado para agir imoralmente quando for necessário. Faz o bem quando pode, mas frequentemente será obrigado pela necessidade a agir de modo traiçoeiro, impiedoso ou desumano.  Ele deve alterar sua conduta quando os ventos da fortuna e a variação das circunstâncias o forçarem a isso.

Virtudes x Sorte
Para ser bem sucedido um governante deveria ter fortuna (boa sorte) e virtù, um termo criado por ele para significar qualidades pessoais como coragem, bom senso, honestidade, capacidade de entender as mudanças.
A virtú compensaria os períodos de má sorte, mas uma pessoa sem qualidades que chegasse a altas posições na sociedade não resistiria à mudança da maré. 

Liberdade x tirania
- A experiência mostra que as cidades nunca aumentaram seus domínios ou suas riquezas  exceto quando estavam em liberdade.
- Tão logo uma tirania se estabelece sobre uma comunidade livre o primeiro mal resultante é que estas cidades não crescem mais em poder ou riquezas mas, na maioria dos casos, retrocedem.

Corrupção, o mal maior
- Os homens, em sua maioria, são mais propensos ao mal do que ao bem. Por conseguinte, tendem a ignorar os interesses da comunidade a fim de agir de acordo com suas disposições malévolas sempre que têm campo livre.
- O começo da corrupção é a perda ou dissipação da preocupação com o bem comum, um processo de degeneração que se desenvolve no corpo dos cidadãos ou, pior, quando os governantes começam a promover suas ambições pessoais  ou de suas facções, em detrimento do interesse público.
- Nos regimes corruptos, há uma tendência para a elaboração de leis e instituições físicas não para o proveito comum e sim para vantagens individuais ou sectárias.

   Em sua análise sobre a corrupção, Maquiavel adverte para o perigo dos métodos escusos usados  para a conquista e manutenção do poder. Um deles  é "fazer favores a vários cidadãos, defendendo-os dos magistrados, auxiliando-os com dinheiro e ajudando-os a conseguir cargos imerecidos".
  O outro é "agradar as massas com divertimentos e donativos públicos, montando exibições caras de natureza calculada para ganhar uma popularidade expúria e entreter o povo, que abre mão de suas liberdades".
   Como vemos, os políticos  de 500 anos atrás não eram muito diferentes dos atuais.