quinta-feira, 30 de agosto de 2007

UM DOMINGO COM DEDÉ FERLAUTO E BARBOSA LESSA



Numa dessas noites de verão, na cozinha da casa dos Ferlauto na rua São Luís, entre uma e outra fatia de pão integral quentinho (feito pelo Dedé e pela Maria Lúcia Roig, a Usha, sua companheira) com queijo e suco de uva, decidimos passar o domingo no sítio de Barbosa Lessa, no interior de Camaquã. Lessa era um dos inúmeros frutos cultivados na fértil lavoura da amizade do Dedé. A cada sábado ele a regava na feira ecológica da José Bonifácio, em longos papos com o poeta, folclorista e então produtor de erva-mate e travesseiros aromáticos, que ali vendia os seus produtos e encontrava os amigos.
Partimos bem cedinho, pois a viagem seria longa. O dia, de sol sem nuvens, estava perfeito. Cheguei antes das oito horas, e a Usha, o Dedé e a nossa amiga Ana Zilles já estavam me esperando. Colocamos no porta-malas macarrão, molho de tomate (preparado pelas gurias), água mineral e um bom vinho tinto chileno para ajudar no cardápio do almoço.
Até Camaquã, o único incidente da viagem foi uma tentativa de estrangulamento: Ana, sentada ao meu lado, começou a sufocar, apertada pelo cinto de segurança. Olhei para trás mal consegui conter o riso: com cara de sádico a la Jack Nicholson, Dedé puxava o cinto, enquanto Ana, quase sem ar, tentava concluir uma frase. Gargalhamos todos. O papo estava sério demais para uma bela manhã de domingo na estrada, e ele o encerrou à sua maneira.
Lessa havia dado todas as informações para chegarmos até o sítio. Depois de Camaquã a estrada de terra não tinha nenhuma sinalização, e volta e meia parávamos para perguntar onde estávamos. Conseguimos identificar a porteira do sítio e seguimos por uma estradinha estreita onde mal cabia um carro - depois ficamos sabendo que aquele caminho já não era usado há meses.
Algumas descidas e subidas eram tão íngremes que tememos não conseguir passar. Em alguns trechos, os galhos das árvores roçavam as laterais do carro. Mas o Fiat Mille (e o seu experiente motorista) superaram todos os obstáculos, e finalmente chegamos à casa de madeira, construída no alto de um pequeno vale. Da varanda se vê um riacho, que rola pelas pedras e forma um pequeno lago depois de despencar em cachoeira. Aquele sítio comprado por Barbosa Lessa depois de sua aposentadoria era a realização do sonho de voltar a viver na sua terra natal sem precisar parar de pesquisar, de ler, de criar e de se comunicar com seus amigos residentes na capital.
O casal morava no meio de uma área de mata nativa, onde cultivava e processava artesanalmente erva-mate e colhia plantas aromáticas na mata virgem para a fabricação de travesseiros. Aos sábados viajava até Porto Alegre num jipe Lada Niva para vender o seus produtos e encontrar os amigos. Perto da casa principal, Barbosa Lessa tinha o seu “escritório” - uma casinha de madeira cheia de livros, com uma janela voltada para o vale, onde podia ler e escrever sossegado, desfrutando de uma paisagem belíssima.
Os abraços e beijos dos nossos anfitriões foram interrompidos por gritos guturais vindos da mata. Rindo, o poeta explicou: são os bugios dando boas-vindas a vocês... Naquela mata virgem viviam bugios ainda em estado selvagem, que se alvorotavam ao ouvirem sons diferentes dos que estavam acostumados.
Quando entrávamos na casa com os alimentos, Nilza, a mulher de Barbosa Lessa, nos deteve, dizendo: “Tudo bem com o macarrão e o vinho, mas aqui não há necessidade de água mineral engarrafada”. Em seguida nos levou até uma fonte de onde jorrava água para uma bica, saída da terra, fresquinha, sem qualquer impureza. Uma bebida rara.
Máquina fotográfica na mão, desci por um caminho entre as árvores até a beira do riacho para fazer fotos da cascata. Estava com pouca água, depois de três meses de estiagem, mas mesmo assim impressionava. Lá em cima, piscinas entre as pedras. Embaixo, as águas límpidas escorriam entre as árvores, toda esta beleza no quintal de casa. Dedé chegou apoiado num cajado, como se tivesse peregrinado léguas e léguas para chegar até ali. Se agachou e bebeu a água da sanga com as mãos em concha.
O almoço foi um banquete. Degustamos com vagar, quase em silêncio, o feijão com arroz, carne de panela e legumes preparados no fogão a lenha pela Nilza. De vez em quando Dedé exclamava “hummmmm, hummmmmm”, o melhor elogio que conseguia fazer quando gostava muito da comida. Bebemos o excelente vinho chileno, mas fiquei encantado mesmo pela água da fonte. Passei o dia bebendo. Tomei um porre daquela água.
Depois do almoço passeamos pelo sítio, envolvidos pelo carinho do Lessa e da Nilza. Foram horas de felicidade, paz e harmonia naquele pequeno paraíso.
Na minha memória, ficaram imagens de um Dedé despreocupado, risonho, moleque, dedicado ao que mais gostava na vida: dar e receber afeto.
* José Otávio da Rosa Ferlauto, jornalista e poeta,  faleceu no dia 24 de agosto de 2007, aos 56 nos, na praia do Campeche, em Florianópolis, onde morava havia dois anos



Barbosa Lessa com o jornalista e poeta José Otávio (Dedé) Ferlauto num domingo ensolarado do outono de 1996 em seu sítio no interior de Camaquã, onde passou os últimos anos de sua vida.

O SÍTIO DA HOSPITALIDADE


Barbosa Lessa nasceu em Piratini, iniciou seus estudos no colégio Gonzaga, em Pelotas, e, adolescente, foi para Porto Alegre, onde terminou o segundo grau no Colégio Estadual Júlio de Castilhos e depois se formou em Direito na Urgs. Desgarrado na capital, iniciou, com alguns amigos também vindos do interior como Paixão Cortes e Glaucus Saraiva, uma revolução para resgatar as tradições gaúchas. Criou o primeiro Centro de Tradições Gaúchas, compôs obras-primas como Negrinho do Pastoreio (qual é o gaúcho que não se emociona cada vez que ouve?), e em 50 livros divulgou o que se chama de cultura gaúcha - seu folclore, suas danças, a história de sua gente. 
Mais de 40 anos depois, consagrado como escritor, folclorista, compositor,publicitário e jornalista, Lessa se aposentou e fez o movimento inverso. Deixou as cidades grandes (São Paulo, e depois Porto Alegre) para morar, até morrer, em 2002, no seu sítio a 30 quilômetros de Camaquã,. De lá saía um sábado por mês para prosear com os amigos na Feira de Artesãos do Parque Farroupilha, em Porto Alegre, e vender erva-mate e travesseiros de capim perfumado produzidos por ele e a mulher Nilza. Nestes 15 anos de exílio voluntário, o sítio do casal se tornou um santuário ecológico onde todos os visitantes eram recebidos com a hospitalidade das pessoas do interior. 


A casa simples, de madeira, fica à beira de um arroio, cercada de mato. Ali, respirando ar puro, bebendo água de uma fonte, o poeta e escritor encontrou a paz que tanto procurava.


Nesta cachoeira do arroio Duro, ao lado da casa de Barbosa Lessa, foram gravadas cenas do filme Netto Perde Sua Alma, de Tabajara Ruas e Beto Souza




Negrinho do Pastoreio
Acendo essa vela pra ti
E peço que me devolvas
A querência que eu perdi
Negrinho do pastoreio
Traz a mim o meu rincão
Eu te acendo essa velinha
Nela está meu coração
Quero rever o meu pago
Coloreado de pitanga
Quero ver a gauchinha
Brincando na água da sanga
Quero trotear nas coxilhas
Respirando a liberdade
Que eu perdi naquele dia
Que me embretei na cidade
O morro de mata-virgem era o cenário descortinado por Barbosa Lessa da janela de seu "escritório" - um quartinho de madeira construído próximo a casa principal, mobiliado apenas com uma mesa e uma cadeira, cercados de livros por todos os lados. 

As colinas do interior de Camaquã, onde Lessa comprou um sítio após a aposentadoria, em 1987

BARBOSA LESSA, UM GAÚCHO NOTÁVEL

Na Semana Farroupilha, jorram nas tevês, rádios e jornais declarações de um tal de "orgulho de ser gaúcho".  Quase sempre exageradas, forçadas. Algumas, ridículas. 
Melhor seria homenagear gaúchos notáveis como Carlos Barbosa Lessa, que aos 19 anos, junto com Paixão Côrtes e outros guris do interior desgarrados na capital, fundou o primeiro Centro de Tradições Gaúchas. 
Pesquisador infatigável das tradições  do Rio Grande, escritor  e compositor de Negrinho do Pastoreiro, Chimarrita e várias outras canções inesquecíveis do folclore gaúcho, era avesso a fanfarronadas. Modesto, achava graça quando os amigos o louvavam como uma das mais importantes personalidades da história do Rio Grande do Sul. 


A sensação esquisita

BARBOSA LESSA*

Há 10 anos viramos as costas à Capital, eu e minha mulher, e nos enfiamos na mata-virgem da serra de Camaquã. No princípio tudo era quase novidade e nos sentimos muito bem, principalmente depois que começamos a produzir plantas medicinais e erva-mate para a Cooperativa Coolméia. A safra de erva era muito animada, com a peonada se agitando no sapeco à beira do barbaquá. Mas depois as coisas foram se complicando, de ano para ano, e começamos a sentir na própria carne o tal êxodo rural. 
Nosso vizinho menos longe, o Seu Alfredo, foi o primeiro a se mandar, nem sei bem pra onde. Também a casa do Seu Leco, o outro vizinho, virou tapera completa. Foram escasseando e desaparecendo os ajudantes ervateiros. Hoje só temos como peão o Altamiro, e olhe lá!, não sabemos se amanhã ainda estará conosco. Há vezes em que dou um grito na mataria e não encontro ninguém para me responder.
Mas existe uma outra face da moeda, que mantém nossa casa num astral sempre elevado. Viver na mata-virgem é algo que lava a alma. Cada vez que o sol nasce, o coração se reaquece. Não tem ninguém para nos encher os ouvidos se queixando da crise. O que nos enche os ouvidos é o gorjeio dos sabiás, o misterioso solfejar do urutau, a orquestração dos bugios roncando, o tipo de uivar do mão-pelada, até mesmo o grasnido do tucano, que aqui é uma ave em extinção.
Um dia desses, de manhãzinha, tive uma surpresa. Ao abrir as venezianas da janela do quarto, deparei-me, a não mais que uns cinco metros, com dois tucanos placidamente pousados nos ramos do velho cambará que nos dá sombra. Logo chamei a Nilza, para que também ela pudesse ver de tão perto esses dois seres habitualmente muito ariscos. Os enormes e coloridos bicos reluziam ao sol!
Eles também nos fitavam, meio sarapantados, com profunda curiosidade. E tive então uma esquisita sensação. Não estou querendo exagerar, agora, fazendo poetice ou vã filosofia. Mas acreditem, que foi verdade: meio constrangido, tive a nítida idéia de que os dois tucanos estavam nos olhando com a natural curiosidade de quem examina, enquanto ainda é tempo, um pobre animal em extinção...


* Texto publicado no periódico Taí, reproduzido na Revista ZH do jornal Zero Hora em 18/5/1997