segunda-feira, 15 de junho de 2009

O SÍTIO DA HOSPITALIDADE


Negrinho do Pastoreio
Acendo essa vela pra ti
E peço que me devolvas
A querência que eu perdi
Negrinho do pastoreio
Traz a mim o meu rincão
Eu te acendo essa velinha
Nela está meu coração
Quero rever o meu pago
Coloreado de pitanga
Quero ver a gauchinha
Brincando na água da sanga
Quero trotear nas coxilhas
Respirando a liberdade
Que eu perdi naquele dia
Que me embretei na cidade
O morro de mata-virgem era o cenário descortinado por Barbosa Lessa da janela de seu "escritório" - um quartinho de madeira construído próximo a casa principal, mobiliado apenas com uma mesa e uma cadeira, cercados de livros por todos os lados. Da mata se ouvia os gritos dos bugios, principalmente quando ouviam vozes de visitantes. "Estão saudando vocês", comentou, rindo, ao chegarmos.

As colinas do interior de Camaquã, onde Lessa comprou um sítio após a aposentadoria, em 1987

A sensação esquisita

BARBOSA LESSA*
Há 10 anos viramos as costas à Capital, eu e minha mulher, e nos enfiamos na mata-virgem da serra de Camaquã. No princípio tudo era quase novidade e nos sentimos muito bem, principalmente depois que começamos a produzir plantas medicinais e erva-mate para a Cooperativa Coolméia. A safra de erva era muito animada, com a peonada se agitando no sapeco à beira do barbaquá. Mas depois as coisas foram se complicando, de ano para ano, e começamos a sentir na própria carne o tal êxodo rural. Nosso vizinho menos longe, o Seu Alfredo, foi o primeiro a se mandar, nem sei bem pra onde. Também a casa do Seu Leco, o outro vizinho, virou tapera completa. Foram escasseando e desaparecendo os ajudantes ervateiros. Hoje só temos como peão o Altamiro, e olhe lá!, não sabemos se amanhã ainda estará conosco. Há vezes em que dou um grito na mataria e não encontro ninguém para me responder.
Mas existe uma outra face da moeda, que mantém nossa casa num astral sempre elevado. Viver na mata-virgem é algo que lava a alma. Cada vez que o sol nasce, o coração se reaquece. Não tem ninguém para nos encher os ouvidos se queixando da crise. O que nos enche os ouvidos é o gorjeio dos sabiás, o misterioso solfejar do urutau, a orquestração dos bugios roncando, o tipo de uivar do mão-pelada, até mesmo o grasnido do tucano, que aqui é uma ave em extinção.
Um dia desses, de manhãzinha, tive uma surpresa. Ao abrir as venezianas da janela do quarto, deparei-me, a não mais que uns cinco metros, com dois tucanos placidamente pousados nos ramos do velho cambará que nos dá sombra. Logo chamei a Nilza, para que também ela pudesse ver de tão perto esses dois seres habitualmente muito ariscos. Os enormes e coloridos bicos reluziam ao sol!
Eles também nos fitavam, meio sarapantados, com profunda curiosidade. E tive então uma esquisita sensação. Não estou querendo exagerar, agora, fazendo poetice ou vã filosofia. Mas acreditem, que foi verdade: meio constrangido, tive a nítida idéia de que os dois tucanos estavam nos olhando com a natural curiosidade de quem examina, enquanto ainda é tempo, um pobre animal em extinção...
* Texto publicado no periódico Taí, reproduzido na Revista ZH do jornal Zero Hora em 18/5/1997



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