Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853)era um viajante incansável. Em 1820, quando atravessou o rio Mampituba e iniciou suas andanças pela Capitania dos gaúchos, o botânico francês já havia percorrido os atuais estados de Minas Gerais, Goiás, São Paulo, Espírito Santo, Paraná e Santa Catarina. Foram três anos de observações sobre as plantas e as pessoas da imensa colônia portuguesa.
Em seu livro Rio Grande do Sul, Prazer em Conhecê-lo, de leitura obrigatória para quem quer saber como surgiu e se consolidou o extremo sul do país, Barbosa Lessa extrai trechos do livro Viagem ao Rio Grande do Sul, crônicas de Saint Hilaire sobre os nove meses que passou entre o frio úmido de Porto Alegre, o calor insuportável de São Borja e os perigos da Lagoa dos Patos. Os relatos revelam como viviam os gaúchos numa época em que aqui só o Litoral e a campanha eram habitados. As únicas atividades econômicas eram a pecuária e as charqueadas, em que a mão-de-obra eram os escravos, quase sempre tratados com crueldade pelos seus donos. Como recém havia chegado de Santa Catarina (da sua parte habitada), Saint-Hilaire faz uma interessante comparação entre os tipos humanos das duas capitanias.
São retratos interessantíssimos da realidade do extremo sul do continente antes da proclamação da independência, quando a região ainda era disputada por portugueses e espanhóis.
O CLIMA
“Esta Capitania é certamente uma das mais ricas de todo o Brasil e uma das mais bem aquinhoadas pela natureza. Os ventos, renovando constantemente o ar, fazem com que certas moléstias, tais como as febres intermitentes, sejam aqui inteiramente desconhecidas. As moléstias mais comuns são as doenças do peito e da garganta e os reumatismos, que provêm das contínuas mudanças de temperatura”.
LAGOA PERIGOSA
“Situada à beira-mar, possui inúmeros lagos e rios que oferecem fáceis meios de transporte. Entretanto, no tocante à lagoa dos Patos, é verdadeiramente inconcebível que não tenha o governo, até agora, tomado medida alguma para tornar menos perigosa a navegação”.
TERRA FÉRTIL
“O solo produz trigo, centeio, milho e feijão com abundância, e experiências têm provado que todas as árvores, cereais e legumes da Europa aqui produzirão facilmente se forem cultivados.”
GADO À BEÇA
“As pastagens, comportando uma imensidão de gado, não exigem dos estancieiros grandes despesas com escravos, como acontece nas regiões de mineração e de indústria açucareira. Não é raro encontrar estâncias com renda de 10 a 40 mil cruzados. Como quase não há despesas a fazer, tal fortuna tende a aumentar em rápida progressão.”
“Nada mais comum aqui que o roubo de animais. É tão banal este gênero de furto que chega a ser visto como uma coisa legítima.”
BRANCOS, ÍNDIOS, NEGROS
“A Capitania tem 66.665 habitantes, sendo 32.000 brancos, 5.399 homens de cor livres, 20.611 homens de cor escravizados e 8.655 índios”.
DIFERENÇAS ENTRE GAÚCHOS OS CATARINENSES
“Os habitantes passam a vida, por assim dizer, a cavalo, e frequentemente locomovem-se a grandes distâncias com rapidez suposta além das possibilidades humanas. A maioria deles é originária de Açores, tal como os da Capitania de Santa Catarina. Todavia, uns e outros pouco se assemelham. Os daqui são corpulentos, os outros são magros e pequenos. Os daqui são corados, têm maior vivacidade de modos, os dali tem tez amarelada. Tais diferenças provêm naturalmente de seus regimes e hábitos. Os daqui vivem continuamente a cavalo, fazendo exercícios e respirando o ar mais puro e sadio da terra; os catarinenses vivem quase sempre da pesca ou do trabalho da terra. Os desta Capitania comem carne, e algumas vezes pão, e os segundos alimentam-se quase somente de peixe e farinha de mandioca.”
VISITA A UMA CHARQUEADA
“Diante da charqueada do senhor Chaves (o empresário português Antônio Rodrigues Chaves) estendem-se várias fileiras de grossos paus fincados à terra, com varões transversais destinados a estender a carne a secar. A carne-seca não se conserva mais de um ano: é exportada principalmente para o Rio de Janeiro, Bahia e Havana, onde serve de alimento para os negros.”
“Fui hoje com o senhor Chaves à aldeia (Pelotas), viajando em cabriolé descoberto. Nada tão belo como a região por nós atravessada. Nos pomares, na maioria muito grandes, são cultivadas laranjeiras, pessegueiros, parreiras, legumes e algumas flores. "
“Os charqueadores recebem, sem a mínima dificuldade, o gado criado nas gordas pastagens situadas ao sul do Jacuí. Há entre eles homens muito ricos. A média de animais abatidos por ano é de 20 mil.”
“Os brasileiros são em geral prestimosos e generosos, mas o hábito de castigar os escravos embota-lhes a sensibilidade. Nesta Capitania acresce uma outra modalidade da dureza de coração. Vivem, por assim dizer, no meio de matadouros; o sangue dos animais corre sem cessar ao redor deles e desde a infância se acostumam ao espetáculo da morte e dos sofrimentos. Não é pois de estranhar que sejam mais insensíveis que o resto de seus compatriotas.”
OS CÃES
“Observo frequentemente em minhas viagens como a influência do clima é poderosa sobre os seres vivos. Na zona tórrida os cães latem menos, são tímidos e fogem à mais insignificante ameaça. Ao contrário, nesta Capitania eles latem muito e frequentemente perseguem os transeuntes com audácia e animosidade”.
A CRUELDADE DA ESCRAVIDÃO
"Nas charqueadas os negros são tratados com rudeza. O senhor Chaves, tido como um dos charqueadores mais humanos, só fala aos seus escravos com exagerada severidade, no que é imitado pela sua mulher."
"Há sempre na sala um pequeno negro de dez ou doze anos, cuja função é de ir chamar os outros escravos, servir água e prestar pequenos serviços caseiros. Não conheço criatura mais infeliz que essa criança. Nunca se assenta, jamais sorri, em tempo algum brinca. Passa a vida tristemente encostado à parede e é frequentemente maltratado pelos filhos do dono. Não é esta casa a única que usa este impiedoso sistema: ele é comum em outras."
UM BAILE EM PORTO ALEGRE
"Ainda não havia visto no Brasil uma reunião semelhante. No interior as mulheres se escondem e não passam de primeiras escravas da casa, ao passo que os homens não têm mínima idéia dos prazeres que se podem usufruir decentemente. Aqui, dançaram-se valsas, contradanças e bailados espanhóis, algumas senhoras tocaram piano, outras cantaram com muita arte acompanhadas ao bandolim, e a festa terminou com pequenos jogos de salão. As senhoras falam desembaraçadamente comos homens, e stes cercam-nas de gentilezas - sem contudo demonstrarem empenho em agradar, qualidade esta quase exclusiva do francês."