sábado, 3 de setembro de 2011

O DIA DA PENITÊNCIA

Em Oruro, no altiplano boliviano, a principal atividade econômica é a mineração, desde que os espanhóis conquistaram a região e passaram a explorar o subsolo.  Na época colonial, os índios eram usados como mão de obra, e  morriam às centenas de milhares no trabalho das minas.
Aprenderam nas aulas de catecismo dadas pelos missionários católicos que Deus habitava o céu e o diabo as profundezas da terra. Concluíram que com  uma mãozinha do senhor das trevas tudo seria mais fácil - achar bons veios de ouro, prata ou cobre, ou pelo menos não morrer num desmoronamento. E assim surgiu a diablada.
 Desde o século 16, na época do carnaval, os moradores de Oruro dançam e cantam com os rostos encobertos por máscaras medonhas  representando a imagem de satanás. A tradição de homenagear o diabo perdura até hoje, e virou atração turística internacional. Mas, terminada a festa, correm às igrejas para pedir perdão a Deus e à Virgem e serem perdoados deste pecado.
É o dia da penitência.
No Brasil, em agosto, a Rede Globo e a Mc Donalds também fazem a sua penitência.
A Globo satura os lares brasileiros com violência, futebol, sexo e besteirol. As crianças são as maiores vítimas, submetidas a programas que estimulam a erotização precoce, a alimentação à base de doces, refrigerantes e  salgadinhos e a solução de seus problemas na base da pancada, da intriga e da fococa. As menininhas, para estarem na moda, usam baton, se pintam, calçam sapatos de salto e usam roupinhas justinhas. Beijar, namorar e conspirar contra coleguinhas, como nas novelas, se tornam as prioridades numa fase de suas vidas em que não têm condições de avaliar o  certo e o errado.
Mas, um dia por ano, há o Criança Esperança. Os funcionários da empresa são convocados a pedir dinheiro para obras em favor das crianças. É o dia da penitência.
A Mc Donalds, que durante 364 dias por ano entope seus clientes com alimentos à base de carbohidratos, gorduras e refrigerantes (água carbonada com xaropes), tornando-os obesos e desnutridos, criou o Mc Dia Feliz.  Com a ajuda de jornalistas, atores de TV e artistas conhecidos, recolhe dinheiro doado posteriormente  a entidades dedicadas ao tratamento do câncer infantil.  Um dia de penitência pelo dano que causam, principalmente, a meninos e meninas.
Mas, ao contrário dos índios bolivianos, os pecados destas duas megaempresas são reais, e não fruto da imaginação dos padres que acompanhavam os conquistadores espanhóis. 
E não é com um ato penitencial  por ano que eles serão perdoados.    





2 comentários:

Carlos Karnas disse...

Lúcido e competente. Observação crítica esse artigo, Heberle. O enfoque da penitência é inteligente para expor a maneira grandiloquente de como as empresas capitalistas agem. Jogam para a plateia mansa o cenário fantasioso e ilusório da prática do bem, do altruísmo. Na verdade todas se locupletam dentro do sistema, pois praticam ação mercadológica muito mais para se manterem, fortalecerem suas marcas, a imagem pública e faturarem. Expõem suntuosidades, megaespetáculos de custos de produção fantásticos que são rateados no universo de consumidores comovidos. Todos são induzidos a colaborar com ações supostamente beneficentes. As instituições contempladas existem e sobrevivem desta maneira, diante da falta de ação do poder e de políticas públicas no país. Convenhamos, essas organizações promotoras conseguem bancar seus espetáculos grandiosos de maneira tão despojada? Arcam integralmente com seus shows, parafernália tecnológica, divulgação, espaços de mídia, estrutura de arrecadação e todo o resto? Quem paga a grandiosa e espetacular conta desses eventos? Por certo, o mínimo, a sobra do caixa poderá ser canalizada para a benemerência. Mas a contabilidade séria, imparcial e independente jamais é tornada pública. E assim o sistema se mantém para afagar os incautos, os que colaboram e pagam mais impostos. É para se pensar, entre o bem e o mal, o céu e o inferno, com ou sem penitência.
Carlos Karnas

Clovis Heberle disse...

Meu caro, o teu comentário é uma continuação e um fecho importantes e necessários do post.
O que me espanta é que jornalistas e artistas supostamente lúcidos encampam esta megaoperação de marketing da famigerada Mc Donalds, servindo de garotos e garotas-propaganda. Nem falo da Globo, onde nem o Jô Soares escapa da cota compulsória.
Valeu, amigo,
Um abraço