Tem tantas pessoas com distúrbios de comportamento por aí - agressivas, enganadoras, maléficas, invejosas, egoístas, ingratas - que às vezes chego a pensar que o maluco sou eu. Ainda bem que existem os psiquiatras para repor as coisas nos seus lugares. A entrevista abaixo, publicada nas páginas amarelas de Veja do dia 2 de maio de 2007, é de ler e guardar.
Entrevista: Valentim Gentil Filho
A normalidade existe
Segundo o psiquiatra paulista, mesmo de
perto
algumas pessoas são normais. Aliás, normalíssimas.
Ele fala com a
autoridade de quem conduz um grande
estudo sobre o tema
Anna Paula Buchalla
Carol do Valle
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"Não estamos criando a situação do conto
O Alienista. O que ocorre é que, para a grande maioria, é fácil demais
sair do estado de normalidade" |
Há três anos, o psiquiatra Valentim
Gentil Filho, professor da Universidade de São Paulo e um dos grandes nomes da
sua especialidade no Brasil, vem conduzindo no Hospital das Clínicas da capital
paulista um estudo sobre um tema fascinante: o funcionamento do cérebro das
pessoas absolutamente normais. Sim, de acordo com Gentil, elas existem, ao
contrário do que prega o bordão segundo o qual "de perto, ninguém é normal".
Depois de avaliarem centenas de candidatos, o psiquiatra e sua equipe chegaram a
um número de setenta homens e mulheres que estariam livres de quaisquer
transtornos psíquicos e se comportariam com a propriedade exigida pelas
circunstâncias da vida – sem exageros ou carências de comportamento e ação. O
estudo com esse universo normalíssimo deve durar até o fim do ano. Uma das
conclusões já obtidas é que, com a ajuda de antidepressivos, é possível tornar
alguém normal ainda mais... normal. "Investigamos também se existe algum
marcador genético para a normalidade absoluta", diz ele. Gentil, de 60 anos,
presidiu por doze anos o conselho diretor do Instituto de Psiquiatria do
Hospital das Clínicas e, hoje, é um dos diretores da Sociedade Internacional de
Transtornos Bipolares. Autor de setenta artigos publicados em revistas médicas
internacionais, ele deu a seguinte entrevista a VEJA.
Veja – O senhor é responsável
por um estudo no Hospital das Clínicas de São Paulo que visa a mapear como
funciona o cérebro de uma pessoa normal. O que já se descobriu a esse
respeito?Gentil – Sabe aquela
história de que, de perto, ninguém é normal? Pois bem, não é verdade. Os normais
são raros, mas eles existem. Em nosso estudo, conseguimos selecionar homens e
mulheres, entre 18 e 50 anos, sem nenhum indício de distúrbio psiquiátrico. Eles
também não têm nenhum parente de primeiro grau com doenças mentais graves, como
depressão severa e psicose. Estão livres, ainda, de males físicos, como diabetes
e hipertensão, que podem causar transtornos no psiquismo. Foi uma seleção
difícil. É como se estivéssemos atrás de alguém que nunca teve uma gripe. Eu
diria que essas pessoas são mais normais do que os normais. Se vão continuar
sendo pela vida afora, não sabemos, é óbvio. Mas, por enquanto, são uma ótima
fonte para entender como funciona o cérebro das pessoas normais.
Veja – O que os absolutamente
normais têm que os outros não têm?
Gentil – É preciso deixar claro que há graus de ansiedade,
instabilidade de humor, tensão pré-menstrual, insegurança, desconfiança,
irritabilidade e tristeza que são aceitáveis de maneira geral. Para os mais
normais do que os normais, contudo, tais sentimentos interferem muito pouco na
capacidade de cumprir compromissos e de pensar de uma forma razoavelmente clara.
Eles também mostram mais consideração pelo próximo, capacidade de antecipar as
conseqüências dos seus atos, de respeitar os próprios limites, a própria saúde,
de não se deixar prejudicar por comportamentos repetitivos. Isso é o que se
espera de uma pessoa absolutamente normal. Não estamos criando a situação do
conto O Alienista, de Machado de Assis. Não se trata de colocar em
manicômios todo mundo que não exibe tal padrão. O que ocorre é que, para a
grande maioria, é fácil demais sair do estado de normalidade.
Veja – Foram ministrados
antidepressivos aos participantes do estudo. Quais as conclusões até o
momento?
Gentil – Os
resultados preliminares mostram que, para 35% das pessoas que não teriam
indicação de remédio, o uso de antidepressivo exerceu um efeito positivo. Elas
passaram a exibir um estado emocional que chamamos de "melhor do que bem". Essas
pessoas relataram sentir-se menos irritáveis, mais tolerantes e com o humor
ainda melhor.
Veja – Um estudo americano
mostra que 25% dos diagnósticos de depressão estão errados. Esses pacientes
enfrentariam, na verdade, um período de tristeza profunda decorrente de um golpe
emocional. O senhor acredita que se está superdiagnosticando a
depressão?
Gentil – É
possível que, pelo fato de dispormos hoje de bons antidepressivos, os médicos
tendam a prescrever mais esses remédios, na ânsia de ajudar seus pacientes. Mas
é difícil avaliar o que acontece dentro de um consultório. O que se pode dizer é
que, se o médico se baseia apenas no que diz o DSM-IV (sigla para Diagnostic
and Statistical Manual of Mental Disorders, o guia das doenças psiquiátricas da
Associação Americana de Psiquiatria), ele se torna um burocrata. O
diagnóstico é uma arte – devem ser levados em conta o contexto, as informações
fornecidas pelo paciente e, ainda, a própria relação do médico com ele. Em minha
opinião, antes pecar pelo excesso do que pela falta. Embora não se possa
resolver tudo só com remédios, não se pode negar ajuda farmacêutica a quem está
sofrendo.
Veja – Mas isso não implica o
risco de medicalizar os sentimentos negativos, transformando-os necessariamente
em manifestações patológicas?
Gentil – Concordo que alguns médicos exageram. No entanto,
mesmo que o paciente não seja um depressivo na acepção dos manuais, o remédio
pode ajudar a estabilizar o seu humor – e vários estudos já demonstraram isso.
Afinal de contas, um antidepressivo não é como um antibiótico, que só funciona
se houver uma infecção. Esse tipo de medicamento sempre causa alterações no
sistema nervoso, não importa quem esteja tomando. A questão ética que se coloca
é a seguinte: se alguém me procura com uma queixa emocional e eu sei que existe
alívio, devo ou não usar a medicação? A resposta é variável, claro. De qualquer
forma, é essencial dar ao paciente o direito de escolher – desde que ele tenha
condições psicológicas de exercê-lo. Uma pessoa surtada, por exemplo, não tem
capacidade para decidir se deve ou não se tratar. Gostaria de chamar atenção
também para a situação contrária. Há terapeutas que resistem a prescrever
antidepressivos, dizendo a seus pacientes: "Eu acredito em você. Eu confio em
você. Sei que você será capaz de superar seus problemas, sem ter de recorrer a
medicamentos". Isso é um absurdo. Um terapeuta bem treinado jamais faria isso.
Volto a repetir: erramos menos quando diagnosticamos um pouco a mais do que
quando nos omitimos. O problema de negligência profissional é muito mais grave
porque as pessoas podem estar correndo risco de morte – direta ou indiretamente.
Veja – Experimentar
dificuldades emocionais não é fundamental para o crescimento pessoal de cada um,
para o processo de autoconhecimento?
Gentil – Quem pode atestar que o sofrimento faz bem? Por que
não aliviar o desconforto de um paciente se temos meios para isso? Tristeza não
é depressão, mas pode ser um dos sintomas dela. Um luto, por exemplo, pode
desencadear uma depressão. Esse é um julgamento de valor inerente a cada
situação específica, a cada diagnóstico médico.
Veja – Muitas pessoas relutam
em tomar antidepressivos, com receio de que eles possam vir a mudar a sua
personalidade. Esse medo tem algum fundamento científico?
Gentil
– Não existem indícios de que eles sejam prejudiciais. Eu me preocupo menos com
as coisas que são monitoradas intensivamente, como os medicamentos fabricados em
laboratório, e mais com as coisas baseadas simplesmente na intuição. Um exemplo
disso são os tratamentos alternativos, dos quais não se tem comprovação da
eficácia. É o caso do fitoterápico erva-de-são-joão, vendido como
antidepressivo. Não devemos permitir que as pessoas sejam tão criativas com a
vida dos outros.
Veja – Mas existem recursos
da ordem da psicologia tão efetivos quanto os antidepressivos.
Gentil – Não tenho a menor
dúvida disso. Estaria sendo reducionista se levasse em consideração apenas as
substâncias químicas. O tratamento mais efetivo para a depressão é o que associa
a psicoterapia a medicamentos.
Veja – O aumento da
incidência das doenças mentais é assunto de um tratado científico que define a
insanidade como "a praga invisível" da atualidade. Estamos vivendo uma epidemia
de distúrbios psiquiátricos?
Gentil – Acredito que seja
exagero falar em epidemia. Só que, em vários países, houve um crescimento
exponencial nas taxas de incidência de doenças mentais graves, como transtorno
bipolar maníaco-depressivo, esquizofrenia e psicoses de uma maneira geral.
Ninguém sabe exatamente por que isso está acontecendo, mas já temos pistas. Há
estudos que mostram, por exemplo, que, entre os usuários de maconha na
juventude, é quase três vezes maior o risco de surgimento de esquizofrenia.
Também há indícios de que o abuso de álcool pode lesionar o cérebro – em
especial, de quem começa a beber precocemente.
Veja – Na depressão, há um
desequilíbrio nas taxas das substâncias cerebrais responsáveis pela comunicação
entre os neurônios, os neurotransmissores. É nessa distorção química que ainda
se concentram os estudos de novos tratamentos da
doença?Gentil – Os
neurotransmissores foram deixados de lado pelos estudiosos da depressão. Hoje,
sabe-se que eles apenas levam a informação de um lado ao outro do cérebro. Mas
não são essas substâncias que dão as respostas aos comandos cerebrais. Como a
chave de tudo está no conteúdo dessas informações, é atrás disso que a medicina
está correndo.
Veja – É possível determinar
qual é o distúrbio mental que causa mais sofrimento? Gentil – A doença que causa maior sofrimento é sempre a que
você tem. Mas, se formos medir qual delas causa mais prejuízo em termos
mundiais, a depressão ganhará de longe. No que se refere à mais incapacitante, o
primeiro lugar pertence à esquizofrenia. Trata-se de uma doença para a vida
toda.
Veja – O mundo moderno é mais
propício ao surgimento de distúrbios psíquicos?
Gentil – Talvez eu não seja sensível o suficiente, mas não
acredito que a realidade atual seja tão diferente das passadas, em termos de
dificuldades. As diversas gerações enfrentaram as violências e metamorfoses de
seu próprio tempo. O que dizer das brutalidades descritas no Velho Testamento?
Quem hoje suportaria viver nos primórdios da civilização? Os críticos da era da
informação dizem que ela é massacrante. Para mim, a sensação de ligar a
televisão e saber o que está acontecendo em Hong Kong às 7 horas da manhã de lá
ou ligar o computador e ter notícias dos amigos que vivem do outro lado do
planeta faz muito mais bem do que mal. O problema é quando o indivíduo
ultrapassa o seu limite. Cada um tem de trabalhar dentro de suas possibilidades.
Quando isso não ocorre, é preocupante.
Veja – Como se estabelece
esse limite?
Gentil –
Reconhecendo a necessidade de obedecer a um ritmo biológico que, no essencial,
tem de ser mantido a todo custo. É preciso trabalhar, sim, mas também é
essencial descansar, dormir, comer, divertir-se. Não se pode abarcar o mundo
inteiro de uma só vez.
Veja – Nesse sentido, parece
haver um descompasso entre a capacidade do cérebro e a do corpo.
Gentil – Sim, o cérebro humano
é o ápice da perfeição. Na natureza, não existe nada que se compare a ele. Por
isso mesmo, muitas vezes o corpo não o acompanha. O problema é que nunca nos foi
dito que nós deveríamos cuidar do cérebro com o mesmo empenho que dispensamos,
por exemplo, à saúde do coração. É preciso respeitar os sinais que o corpo envia
quando se estabelece um descompasso entre um e outro. Se esses limites não são
respeitados, o cérebro pode se transformar numa armadilha para ele mesmo.
Veja – Se todo mundo fosse
mais normal do que o normal, o mundo não seria sem graça? Não é preciso um pouco
de loucura para que a vida seja menos cinzenta e também haja progresso?
Gentil – O mundo deve muito à
doença mental. Graças também a suas perturbações emocionais, que os faziam
pensar de forma original e divergente, grandes personagens conseguiram mudar a
história. Segundo alguns biógrafos de Winston Churchill, por exemplo, ele não
teria levado a Inglaterra à vitória contra a Alemanha sem o tipo de ousadia que
acompanha as vítimas do transtorno bipolar. Na pintura, o atormentado Van Gogh
produziu maravilhas. Isso não quer dizer que devemos estimular a perturbação
mental. Pelo contrário. Lamento que Van Gogh não tenha tido a oportunidade de se
submeter a um tratamento psiquiátrico. Nessa hipótese, talvez sua obra não
houvesse sido interrompida antes do tempo.