segunda-feira, 7 de novembro de 2011

A NORMALIDADE EXISTE

Tem tantas pessoas com distúrbios de comportamento por aí  - agressivas,  enganadoras, maléficas, invejosas,  egoístas, ingratas - que às vezes chego a pensar que o maluco sou eu. Ainda bem que existem os psiquiatras para repor as coisas nos seus lugares. A entrevista abaixo,  publicada nas páginas amarelas de Veja do dia 2 de maio de 2007, é de ler e guardar.


Entrevista: Valentim Gentil Filho
A normalidade existe
Segundo o psiquiatra paulista, mesmo de perto
algumas pessoas são normais. Aliás, normalíssimas.
Ele fala com a autoridade de quem conduz um grande
estudo sobre o tema

Anna Paula Buchalla
Carol do Valle
"Não estamos criando a situação do conto O Alienista. O que ocorre é que, para a grande maioria, é fácil demais sair do estado de normalidade"

Há três anos, o psiquiatra Valentim Gentil Filho, professor da Universidade de São Paulo e um dos grandes nomes da sua especialidade no Brasil, vem conduzindo no Hospital das Clínicas da capital paulista um estudo sobre um tema fascinante: o funcionamento do cérebro das pessoas absolutamente normais. Sim, de acordo com Gentil, elas existem, ao contrário do que prega o bordão segundo o qual "de perto, ninguém é normal". Depois de avaliarem centenas de candidatos, o psiquiatra e sua equipe chegaram a um número de setenta homens e mulheres que estariam livres de quaisquer transtornos psíquicos e se comportariam com a propriedade exigida pelas circunstâncias da vida – sem exageros ou carências de comportamento e ação. O estudo com esse universo normalíssimo deve durar até o fim do ano. Uma das conclusões já obtidas é que, com a ajuda de antidepressivos, é possível tornar alguém normal ainda mais... normal. "Investigamos também se existe algum marcador genético para a normalidade absoluta", diz ele. Gentil, de 60 anos, presidiu por doze anos o conselho diretor do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas e, hoje, é um dos diretores da Sociedade Internacional de Transtornos Bipolares. Autor de setenta artigos publicados em revistas médicas internacionais, ele deu a seguinte entrevista a VEJA.
Veja – O senhor é responsável por um estudo no Hospital das Clínicas de São Paulo que visa a mapear como funciona o cérebro de uma pessoa normal. O que já se descobriu a esse respeito?Gentil – Sabe aquela história de que, de perto, ninguém é normal? Pois bem, não é verdade. Os normais são raros, mas eles existem. Em nosso estudo, conseguimos selecionar homens e mulheres, entre 18 e 50 anos, sem nenhum indício de distúrbio psiquiátrico. Eles também não têm nenhum parente de primeiro grau com doenças mentais graves, como depressão severa e psicose. Estão livres, ainda, de males físicos, como diabetes e hipertensão, que podem causar transtornos no psiquismo. Foi uma seleção difícil. É como se estivéssemos atrás de alguém que nunca teve uma gripe. Eu diria que essas pessoas são mais normais do que os normais. Se vão continuar sendo pela vida afora, não sabemos, é óbvio. Mas, por enquanto, são uma ótima fonte para entender como funciona o cérebro das pessoas normais.
Veja – O que os absolutamente normais têm que os outros não têm?
Gentil – É preciso deixar claro que há graus de ansiedade, instabilidade de humor, tensão pré-menstrual, insegurança, desconfiança, irritabilidade e tristeza que são aceitáveis de maneira geral. Para os mais normais do que os normais, contudo, tais sentimentos interferem muito pouco na capacidade de cumprir compromissos e de pensar de uma forma razoavelmente clara. Eles também mostram mais consideração pelo próximo, capacidade de antecipar as conseqüências dos seus atos, de respeitar os próprios limites, a própria saúde, de não se deixar prejudicar por comportamentos repetitivos. Isso é o que se espera de uma pessoa absolutamente normal. Não estamos criando a situação do conto O Alienista, de Machado de Assis. Não se trata de colocar em manicômios todo mundo que não exibe tal padrão. O que ocorre é que, para a grande maioria, é fácil demais sair do estado de normalidade.
Veja – Foram ministrados antidepressivos aos participantes do estudo. Quais as conclusões até o momento?
Gentil – Os resultados preliminares mostram que, para 35% das pessoas que não teriam indicação de remédio, o uso de antidepressivo exerceu um efeito positivo. Elas passaram a exibir um estado emocional que chamamos de "melhor do que bem". Essas pessoas relataram sentir-se menos irritáveis, mais tolerantes e com o humor ainda melhor.
Veja – Um estudo americano mostra que 25% dos diagnósticos de depressão estão errados. Esses pacientes enfrentariam, na verdade, um período de tristeza profunda decorrente de um golpe emocional. O senhor acredita que se está superdiagnosticando a depressão?
Gentil – É possível que, pelo fato de dispormos hoje de bons antidepressivos, os médicos tendam a prescrever mais esses remédios, na ânsia de ajudar seus pacientes. Mas é difícil avaliar o que acontece dentro de um consultório. O que se pode dizer é que, se o médico se baseia apenas no que diz o DSM-IV (sigla para Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, o guia das doenças psiquiátricas da Associação Americana de Psiquiatria), ele se torna um burocrata. O diagnóstico é uma arte – devem ser levados em conta o contexto, as informações fornecidas pelo paciente e, ainda, a própria relação do médico com ele. Em minha opinião, antes pecar pelo excesso do que pela falta. Embora não se possa resolver tudo só com remédios, não se pode negar ajuda farmacêutica a quem está sofrendo.
Veja – Mas isso não implica o risco de medicalizar os sentimentos negativos, transformando-os necessariamente em manifestações patológicas?
Gentil – Concordo que alguns médicos exageram. No entanto, mesmo que o paciente não seja um depressivo na acepção dos manuais, o remédio pode ajudar a estabilizar o seu humor – e vários estudos já demonstraram isso. Afinal de contas, um antidepressivo não é como um antibiótico, que só funciona se houver uma infecção. Esse tipo de medicamento sempre causa alterações no sistema nervoso, não importa quem esteja tomando. A questão ética que se coloca é a seguinte: se alguém me procura com uma queixa emocional e eu sei que existe alívio, devo ou não usar a medicação? A resposta é variável, claro. De qualquer forma, é essencial dar ao paciente o direito de escolher – desde que ele tenha condições psicológicas de exercê-lo. Uma pessoa surtada, por exemplo, não tem capacidade para decidir se deve ou não se tratar. Gostaria de chamar atenção também para a situação contrária. Há terapeutas que resistem a prescrever antidepressivos, dizendo a seus pacientes: "Eu acredito em você. Eu confio em você. Sei que você será capaz de superar seus problemas, sem ter de recorrer a medicamentos". Isso é um absurdo. Um terapeuta bem treinado jamais faria isso. Volto a repetir: erramos menos quando diagnosticamos um pouco a mais do que quando nos omitimos. O problema de negligência profissional é muito mais grave porque as pessoas podem estar correndo risco de morte – direta ou indiretamente.
Veja – Experimentar dificuldades emocionais não é fundamental para o crescimento pessoal de cada um, para o processo de autoconhecimento?
Gentil – Quem pode atestar que o sofrimento faz bem? Por que não aliviar o desconforto de um paciente se temos meios para isso? Tristeza não é depressão, mas pode ser um dos sintomas dela. Um luto, por exemplo, pode desencadear uma depressão. Esse é um julgamento de valor inerente a cada situação específica, a cada diagnóstico médico.
Veja – Muitas pessoas relutam em tomar antidepressivos, com receio de que eles possam vir a mudar a sua personalidade. Esse medo tem algum fundamento científico?
Gentil – Não existem indícios de que eles sejam prejudiciais. Eu me preocupo menos com as coisas que são monitoradas intensivamente, como os medicamentos fabricados em laboratório, e mais com as coisas baseadas simplesmente na intuição. Um exemplo disso são os tratamentos alternativos, dos quais não se tem comprovação da eficácia. É o caso do fitoterápico erva-de-são-joão, vendido como antidepressivo. Não devemos permitir que as pessoas sejam tão criativas com a vida dos outros.
Veja – Mas existem recursos da ordem da psicologia tão efetivos quanto os antidepressivos.
Gentil – Não tenho a menor dúvida disso. Estaria sendo reducionista se levasse em consideração apenas as substâncias químicas. O tratamento mais efetivo para a depressão é o que associa a psicoterapia a medicamentos.
Veja – O aumento da incidência das doenças mentais é assunto de um tratado científico que define a insanidade como "a praga invisível" da atualidade. Estamos vivendo uma epidemia de distúrbios psiquiátricos?
Gentil – Acredito que seja exagero falar em epidemia. Só que, em vários países, houve um crescimento exponencial nas taxas de incidência de doenças mentais graves, como transtorno bipolar maníaco-depressivo, esquizofrenia e psicoses de uma maneira geral. Ninguém sabe exatamente por que isso está acontecendo, mas já temos pistas. Há estudos que mostram, por exemplo, que, entre os usuários de maconha na juventude, é quase três vezes maior o risco de surgimento de esquizofrenia. Também há indícios de que o abuso de álcool pode lesionar o cérebro – em especial, de quem começa a beber precocemente.
Veja – Na depressão, há um desequilíbrio nas taxas das substâncias cerebrais responsáveis pela comunicação entre os neurônios, os neurotransmissores. É nessa distorção química que ainda se concentram os estudos de novos tratamentos da doença?Gentil – Os neurotransmissores foram deixados de lado pelos estudiosos da depressão. Hoje, sabe-se que eles apenas levam a informação de um lado ao outro do cérebro. Mas não são essas substâncias que dão as respostas aos comandos cerebrais. Como a chave de tudo está no conteúdo dessas informações, é atrás disso que a medicina está correndo.
Veja – É possível determinar qual é o distúrbio mental que causa mais sofrimento? Gentil – A doença que causa maior sofrimento é sempre a que você tem. Mas, se formos medir qual delas causa mais prejuízo em termos mundiais, a depressão ganhará de longe. No que se refere à mais incapacitante, o primeiro lugar pertence à esquizofrenia. Trata-se de uma doença para a vida toda.
Veja – O mundo moderno é mais propício ao surgimento de distúrbios psíquicos?
Gentil – Talvez eu não seja sensível o suficiente, mas não acredito que a realidade atual seja tão diferente das passadas, em termos de dificuldades. As diversas gerações enfrentaram as violências e metamorfoses de seu próprio tempo. O que dizer das brutalidades descritas no Velho Testamento? Quem hoje suportaria viver nos primórdios da civilização? Os críticos da era da informação dizem que ela é massacrante. Para mim, a sensação de ligar a televisão e saber o que está acontecendo em Hong Kong às 7 horas da manhã de lá ou ligar o computador e ter notícias dos amigos que vivem do outro lado do planeta faz muito mais bem do que mal. O problema é quando o indivíduo ultrapassa o seu limite. Cada um tem de trabalhar dentro de suas possibilidades. Quando isso não ocorre, é preocupante.
Veja – Como se estabelece esse limite?
Gentil – Reconhecendo a necessidade de obedecer a um ritmo biológico que, no essencial, tem de ser mantido a todo custo. É preciso trabalhar, sim, mas também é essencial descansar, dormir, comer, divertir-se. Não se pode abarcar o mundo inteiro de uma só vez.
Veja – Nesse sentido, parece haver um descompasso entre a capacidade do cérebro e a do corpo.
Gentil – Sim, o cérebro humano é o ápice da perfeição. Na natureza, não existe nada que se compare a ele. Por isso mesmo, muitas vezes o corpo não o acompanha. O problema é que nunca nos foi dito que nós deveríamos cuidar do cérebro com o mesmo empenho que dispensamos, por exemplo, à saúde do coração. É preciso respeitar os sinais que o corpo envia quando se estabelece um descompasso entre um e outro. Se esses limites não são respeitados, o cérebro pode se transformar numa armadilha para ele mesmo.
Veja – Se todo mundo fosse mais normal do que o normal, o mundo não seria sem graça? Não é preciso um pouco de loucura para que a vida seja menos cinzenta e também haja progresso?
Gentil – O mundo deve muito à doença mental. Graças também a suas perturbações emocionais, que os faziam pensar de forma original e divergente, grandes personagens conseguiram mudar a história. Segundo alguns biógrafos de Winston Churchill, por exemplo, ele não teria levado a Inglaterra à vitória contra a Alemanha sem o tipo de ousadia que acompanha as vítimas do transtorno bipolar. Na pintura, o atormentado Van Gogh produziu maravilhas. Isso não quer dizer que devemos estimular a perturbação mental. Pelo contrário. Lamento que Van Gogh não tenha tido a oportunidade de se submeter a um tratamento psiquiátrico. Nessa hipótese, talvez sua obra não houvesse sido interrompida antes do tempo.

Um comentário:

Anônimo disse...
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