quarta-feira, 27 de maio de 2009

A GERAÇÃO NEM NEM


VIDAS DESPERDIÇADAS

O lixo é o símbolo da sociedade globalizada. Nas últimas décadas temos produzido cada vez mais objetos descartáveis, e até países do terceiro mundo já não sabem o que fazer os seus rejeitos, de sacolas de plástico a carcaças de computadores. A população se concentra em cidades cada vez maiores e poluídas. A vida moderna se caracteriza pela necessidade de consumir mais, trabalhar mais para trocar mais rapidamente de carro, de roupa, de celular.
Só que este padrão de vida custa caro, e é inacessível para a maioria da população. Acaba criando legiões de insatisfeitos, frustrados. Até porque a era dos empregos estáveis, da carreira numa só empresa até uma aposentadoria tranquila, acabou.  As corporações modernas querem funcionários jovens, bem preparados, ambiciosos e dispostos a tudo para manter os seus postos, sem reclamar dos salários. Reduzir os quadros de trabalhadores (e aumentar a carga de trabalho dos remanescentes) é meta de todas. Como num Big Brother, ao menor descuido os menos competitivos são descartados. Uma das consequências desta dura realidade é o surgimento da geração chamada de Nem, Nem - nem estuda, nem trabalha, não está nem aí. São jovens que, na idade de plena potência física e mental, preferem passar seus dias curtindo uma boa, às custas dos pais,  despreocupados com um futuro que, para eles, nunca chegará.  Decidiram não lutar.
Zygmunt Bauman, sociólogo polonês que desde 1971 leciona na Universidade de Leeds, na Inglaterra, dedica o livro Vidas Desperdiçadas (Editora Zahar, 170 páginas, publicado em 2004) a uma análise dolorosamente lúcida do processo econômico, político e social da sociedade de consumo que transforma milhões de pessoas - muitas vezes a maioria da população de um país - em lixo humano, reduzido à exclusão, sem direito a reciclagem.
Pior: ao contrário do que aconteceu até o início do século XX, já não há mais territórios disponíveis para enviar estas massas de excluídos. Bauman dá exemplos como a ocupação do Canadá por trabalhadores ingleses desempregados, em 1881. Nós mesmos, descendentes de imigrantes portugueses, alemães, italianos, espanhóis, somos frutos destas mudanças cíclicas que expeliram milhões de pessoas de suas terras em busca de uma nova chance. Só que agora os países que mantiveram seu equilíbrio social às custas do exílio dos excedentes criam barreiras cada vez mais rígidas para impedir o ingresso desses indesejados que tentam sair da condição de miséria.
Expulso pelo regime polonês em 1968 e obrigado a emigrar para o Canadá, o sociólogo dedica parte de seu livro a denunciar a mudança do papel dos governos. São raros os que ainda se mantém fiéis ao princípio do estado social (Suécia, Dinamarca e Suíça entre eles). A Inglaterra pós-Tatcher e os Estados Unidos pós-Reagan lideram a mudança para o estado policial: guarnecer as fronteiras para impedir a entrada dos indesejáveis e encarcerar os cada vez mais numerosos contraventores das leis, jogados em prisões transformadas em depósitos de seres  humanos. Não se fala mais - nem na Europa nem no Brasil - em reciclar os presos para que voltem ao convício da sociedade. Mais importante é construir mais e maiores prisões para confinar os excluídos.
A cultura do lixo ocupa um quarto das páginas do livro. Aborda desde as relações humanas até a produção cultural, marcada pela busca aos modismos descartáveis. É a "cultura do cassino", em que todo produto cultural deve ter o máximo impacto e obsolescência instantânea.
Nada que está no livro de Bauman chega a ser uma novidade. Mas é fascinante o cruzamento de aspectos sociais, políticos, históricos e econômicos para responder a tantas indagações que fazemos a respeito desta época na qual as transformações ocorrem com tanta rapidez e nos atingem profundamente, deixando-nos inseguros e confusos quanto ao futuro.
Do livro:

"Na Grã Bretanha, produzimos cerca de um milhão de toneladas de refugo eletrônico em 2004, esperando dobrar este volume em 2010. As empresas aceleram o trajeto dos equipamentos rumo à obsolescência, tornando-os permanentemente defasados ou criando a impressão de que, se não se mantiver em dia, você é que será o defasado."
"Com o benefício da distância, podemos ver que houve um verdadeiro divisor de águas na história moderna, na década entre os 30 anos do pós-guerra, marcados pela reconstrução, o pacto social e o otimismo desenvolvimentista que acompanhou o desmantelamento do sistema colonial e o florescer de novas nações, e o admirável mundo novo caracterizado por fronteiras eliminadas ou rompidas, pela avalanche de informações, a globalização galopante, uma orgia consumista no Norte abastado e um penetrante sentimento de desespero e exclusão em grande parte do resto do planeta."
"O relatório do ACNUR - Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados - de 2004 estimava em 22,1 milhões o número de refugiados, sem incluir os que estavam sob os cuidados de outras agências nem os quatro milhões de palestinos e as minorias perseguidas às quais é negado o direito à cidadania".
"O Estado social está se tornando aos poucos, mas de modo inexorável e consistente, um Estado-guarnição, que cada vez mais protege os interesses das corporações globais, transnacionais, enquanto aumenta o grau de repressão e militarização do front doméstico."
"De forma explícita, o principal e talvez único propósito das prisões não é ser apenas um depósito de lixo qualquer, mas o depósito final,definitivo. Uma vez rejeitado, sempre rejeitado.
"Uma amiga que vive num dos países da União Européia, pessoa muito inteligente e instruída, criativa, que domina diversos idiomas e que passaria com brilhantismo na maioria dos testes e entrevistas de emprego, queixou-se numa carta do fato de o mercado de trabalho ser delicado como a gaze e quebradiço como a porcelana."

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