domingo, 18 de abril de 2010

SUELLY ORSINI LOBATO


   

A funcionária do Cartório Eleitoral de Tramandaí ficou surpresa ao ver aquela senhora caminhando de andador se aproximar do guichê e anunciar que gostaria de transferir seu título eleitoral para votar nas eleições presidenciais de outubro de 2010. A menos de dois meses de completar 91 anos, estaria dispensada de participar da escolha dos dirigentes do país há décadas, mas não abria mão do direito - e do dever - de votar.
Outra surpresa: ao ser convidada pela funcionária para ser atendida no carro, para não ter que caminhar e ficar em pé, não aceitou. "Se os velhos ganham mordomias demais, acabam se tornando inúteis", disse.
Suelly Orsini Lobato, minha sogra, é assim. Cheia de energia, tem e expressa suas opiniões sobre qualquer tema, mesmo que isto resulte numa acalorada discussão.

Enquanto pode, não admitia abrir mão do que considera suas obrigações - tomar conta da casa, onde vivia com o filho mais velho, e administrar os imóveis que aluga para aumentar a renda da aposentadoria.
Só já não consegue cozinhar como antes. Ficaram na memória os bolinhos de bacalhau, os pastéis, os bifes de filé à milanesa, os camarões limpos um a um, os mocotós sem igual e as carnes assadas que perfumavam a cozinha do casarão da rua Faria Santos, no bairro Petrópolis, em Porto Alegre, onde morou até pouco depois da morte do marido, Leôncio Lobato Júnior, contador do Senai/RS. 

Cada almoço era um banquete - mesmo naqueles dias em que ela anunciava : "hoje não fiz nada..."
Vaidosa, pintava o cabelo e estava sempre bem vestida. Desde que foi morar no Imbé, em 2004,  tomava sol nos finais de tarde na varanda de sua casa, com vista para as montanhas, de banho tomado e perfumada, mesmo que não estivesse esperando ninguém. Fazia palavras cruzadas e, como toda avó, croché.

Gostava de estar bem informada: assinava e lia jornais e revistas, assistia telejornais e não perdia o programa de debates na tevê "Os Guerrilheiros da Notícia".
De ascendência italiana e portuguesa, Dona Suelly adora conversar. Por telefone, mantém contato constante com as seis filhas, a quem sempre está pronta a ajudar, dar conselhos, ouvir confidências. Sua generosidade se estende aos genros - todos para ela são filhos - aos netos e aos bisnetos.
As características mais marcantes de sua personalidade se manifestaram desde que ela era criança. Aos oito anos, estudando no segundo ano do colégio de freiras Sevigné, na rua Duque de Caxias, em Porto Alegre, um dia ela, sem consultar ninguém, caminhou até o Colégio Estadual Paula Soares, a um quilômetro de distância. Procurou a diretora e explicou que queria estudar ali pois estava muito pesado para a sua mãe viúva pagar um colégio particular. Contou como era difícil a vida para a família - ela, a mãe Adelina, o irmão mais moço Sady 
Orsini, que  se tornou um destacado advogado, e duas tias, Nica e Titina, que vieram juntos da cidade de Rio Grande, onde nasceram, após o falecimento de seu pai Luís Orsini.
Conseguiu a transferência, claro.
Com a mesma determinação que, aos 91 anos, foi até o cartório para transferir o título eleitoral de Porto Alegre para Tramandaí, e poder continuar votando.


Desde 2012,  depois de uma queda que a impediu de andar, dona Suelly passou a morar numa geriatria, o Ancionato Mariana, em Mariluz.  
Continuou lúcida, com boa saúde - era a única que não tomava remédio algum - e passava  as tardes vendo filmes, geralmente clássicos antigos, da sua videoteca, continuamente abastecida pelas filhas. 
Devota do Padre Reus desde criança, quando o conheceu, contava que o religioso havia predito que ela viveria por 100 anos. A profecia se realizou. Ela faleceu no dia 26 de setembro de 2019, aos 100 anos e três meses, tranquilamente, sem sentir dores,  de causas naturais.  


 Dona Suelly e eu na varanda de sua casa de veraneio, 
    no Imbé, em janeiro de 2010

        Foto de Rodrigo Lobato Duarte 


       O jovem casal Suelly Orsini e Leoncio Lobato Júnior em 1943

quarta-feira, 14 de abril de 2010

FLY, BUTTERFLY


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sábado, 10 de abril de 2010

VOCÊ AINDA COMPRA CD???


"Se você é daqueles que ainda compra cedês, confere aí este lançamento", disse o locutor da rádio FM com sua voz de pato, enquanto eu dirigia pela Goethe, quase chegando ao Parcão. Sim, respondi para mim mesmo, eu ainda compro CDs. Mesmo sendo cada vez mais caros, e raros. Mas aquele toque do cara da rádio ficou na minha memória. Me senti como naquela época em que os amigos distribuíam seus LPs, depois migrarem definitivamente para a tecnologia digital. Não demorou muito e eu também dava os meus discos e vitrolas.
Enquanto der, porém, vou continuar comprando cedês.


Mesmo sem ter mais toca-discos, ainda guardo algumas dezenas de LPs. Pelo conteúdo e pelas capas, verdadeiras obras de arte. A do Sticky Fingers foi criada por Andy Warhol.



terça-feira, 30 de março de 2010

LUNA LLENA




"La luna me está mirando
Yo no sé lo que me ve
Yo tengo la ropa limpia
Ayer tarde la lavé
Luna, luna, luna llena, menguante"
Verso da música Tonada de la Luna Llena,
de Simon Dias (Venezuela)
CD Fina Estampa, de Caetano Veloso





domingo, 28 de março de 2010

COLONO, POR QUE NÃO?

Um colono de Nova Prata ( foto de Arlindo Itacir Battistel)

Na minha infância, em Três Passos (uma cidade do Noroeste do Rio Grande do Sul, perto da fronteira com a Argentina), meu pai tinha uma daquelas casas de comércio que vendiam de tudo, de tecidos a alimentos. Os colonos do interior do município chegavam em velhos caminhões ou carroças para entregarem o que produziam e fazerem as suas compras, e depois ficavam no balcão, bebendo e dando gargalhadas a cada piada, a maioria contada em alemão.
Sempre me pareceram pessoas toscas, fadadas ao trabalho de sol a sol pela sobrevivência, vivendo em condições precárias.
Minha única experiência na lavoura, aos dez anos de idade, foi traumática: ao plantar aipim - no quintal da nossa casa cultivávamos laranjas, maçãs, moranguinhos, uvas, tomates, alface e sei lá mais quantas frutas, hortaliças e verduras - o cabo da enxada me deu calos nas mãos. Os calos infeccionaram e fui levado ao hospital para uma cirurgia dolorosa. Nunca mais peguei numa enxada...
Com o passar do tempo, o preconceito deu lugar à admiração por estas pessoas que vivem de plantar, colher, ordenhar, criar animais. Mas quem me explicou didaticamente a função social dos colonos foi o agrônomo e ecologista José Lutzenberger. Ele me chamou atenção para o fato de eles serem ecologicamente equilibrados. Produzem o que necessitam para se alimentar, e vendem o excedente para comprar o que lhes faz falta. Pouco ou nada sobra para supérfluos.
Vivem em harmonia com a natureza: o esterco dos animais vira adubo para a lavoura. Uma casa típica de um colono tem sempre uma ou mais vacas leiteiras, porcos e galinhas, hortas de verduras e hortaliças, árvores frutíferas.

Mas eles não vivem na Idade da Pedra. Na garagem há um carrinho ou uma camionete com muita quilometragem - as picapes zero quilômetro são privilégio dos grandes proprietários, que podem se endividar junto aos bancos. Substituídos por tratores, arados como o da foto que ilustra este post são cada vez mais raros. Tevês com antenas parabólicas mantém os colonos em contato com o mundo, por mais distantes que estejam das cidades. Em cada povoado as sociedades de canto, os clubes, os campos de futebol e as canchas de bocha garantem a diversão dos fins de semana.
São raros os empregados - todo o trabalho da propriedade é dividido entre os familiares. Há pobres, mas quase não se vê miseráveis.
Os pequenos municípios do sul do país, produtores de frutas como a uva e o morango, de fumo e de derivados de leite, estão entre os primeiros nos indicadores de qualidade de vida. Os índices de analfabetismo nas regiões de colonização alemã e italiana são próximos a zero, e a longevidade dos moradores é semelhante à da Itália e da Alemanha de onde vieram os seus antepassados. 

Não dá vontade de ser colono?







Um casal de camponeses, frontes abaixadas, depois de um dia de trabalho.
Ao fundo, uma igrejinha e as badaladas do sino. 
É a hora da Ave-Maria, este momento mágico entre o dia e a noite. 
Angelus, de Jean-François Millet, (1859) é uma das pinturas mais reproduzidas e conhecidas do mundo. 
Está exposta no Museu D'Orsay, em Paris.



domingo, 7 de março de 2010

O DIA DE ROSÂNGELA

Domingo, sete de março. Só se falava no Dia Internacional da Mulher, mas Rosângela, loirinha, olhos claros, 14 anos, tinha mais o que fazer. Passou a tarde pescando sardinhas na ponte do rio Tramandaí.
Limpou os peixes, colocou num garrafão e foi para a esquina da rua da Igreja com a Emancipação para vender, a seis reais o quilo. Às sete da noite, apesar de todo esforço, não havia vendido nada. Mas não desistiu. Precisa ajudar a família.
O verão para os pobres do Litoral é curto, e o inverno, interminável.
Amanhã, segunda-feira, volta para a escola. Está na quarta série, e sonha com um futuro melhor. Sardinhas, só aquelas de lata, no supermercado.




COMO ESQUECER CLÓVIS OTT?

A vaidade é um mal que afeta a todos os jornalistas. Ver o nome publicado no jornal, ser reconhecido na rua, ter um cargo de chefia, derrubar uma autoridade com aquela reportagem devastadora são formas de alimentar o ego para suportar tantas horas de trabalho, ganhando salários bem menores do que imaginam nossos amigos de outras profissões.
Em geral, a vaidade é controlável: depois da primeira demissão, ou de alguns anos comendo o pó da estrada, o jornalista se dá conta de que não é tão importante nem infalível quanto pensava. Mas todos conhecemos alguns casos de ególatras incuráveis.
Clóvis Camargo Ott, falecido em janeiro de 2006 aos 61 anos, vítima de acidente vascular cerebral depois de uma longa luta contra uma doença renal, era exatamente o contrário disso. Trabalhou no Diário de Notícias, na Folha da Manhã, para o qual cobriu a Revolução dos Cravos (levante que derrubou a ditadura salazarista, em 1974), no Correio do Povo, na Folha da Tarde e na Zero Hora. Viveu na Europa, atuando em jornais portugueses. Nos últimos anos foi assessor de imprensa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde editava, com outros jornalistas de primeira linha como Juarez Fonseca e Ademar Vargas de Freitas, o excelente Jornal da Ufrgs.
Apesar de ter sido um dos melhores repórteres de sua geração, não estava nem aí para o jogo de aparências que envolve a profissão.
Na Zero Hora, onde trabalhamos juntos na década de 80, ao ver aqueles grupos de visitantes do interior do Estado, costumava murmurar, em meio ao matraquear das máquinas de escrever: "quero pipoca, quero amendoim...", como se fosse um macaco de zoológico.
Achava divertido sermos três Clóvis na redação - ele, o Malta e eu. Nos saudava com um grito de guerra: "Clóvis! Tu chama um e aparecem três - que valem por seis!"
Não era incomum, mesmo à vista de editores ou do diretor, agraciar colegas com um sonoro tapa na bunda - coisa de criança travessa.
Cultivava o hábito de estar sempre ao lado dos amigos, tanto nas horas boas como nas más. Como quando fui demitido da Folha da Tarde, em outubro de 1980. À noite, sozinho em casa, soou a campainha. Era ele, com um garrafão de vinho, para me dar apoio.

Como esquecer um gesto desses? Como esquecer Clóvis Ott?