domingo, 8 de abril de 2018

CRÔNICAS HOSPITALARES




Amanhece no Posto de Saúde 24 Horas de Imbé.  A emergência ainda está vazia, e nos leitos estão apenas os pacientes baixados na véspera. Mas esta calma é aparente: a qualquer momento pode se tornar uma correria frenética.   Uma rotina em quatro dos cinco dias em que "morei" lá, acompanhando um familiar.
Mas naquela sexta-feira, 16 de março, a "hora do pique", como se diz nas redações de jornal,- durou o dia inteiro e parte da noite. Eram homens, mulheres e crianças com entorses, infartos, queimaduras, falta de ar, ferimentos a faca e a bala. As ambulâncias saíam e voltavam, com os socorristas abrindo caminho entre as pessoas que esperavam atendimento. Três pessoas, em estado gravíssimo, foram transferidas para o hospital de Tramandaí.
 Os dois médicos, a enfermeira e os quatro técnicos em enfermagem não paravam um instante, percorrendo cada uma das camas.  No fim da tarde não havia mais nem cadeiras disponíveis para acomodar os pacientes, alguns deles chorando de dor, e os acompanhantes foram convidados a sair da sala da emergência para dar lugar a quem chegava. 
Foram 12 horas de tensão, em que a equipe de plantão só parou por alguns minutos para um lanche. Mas no final, tudo deu certo.  Médicos e a equipe de enfermagem trabalharam em harmonia, quase sem se falar, encarando com naturalidade, sem queixas ou discussões, os desafios de uma estrutura modesta em um prédio simples. 
Os pacientes - sem exceção - foram tratados com respeito e carinho. E os "muito obrigado" se repetiram, ditos com gratidão por cada um que, com um sorriso e um aperto de mão,  recebeu alta. 

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Os Postos de Saúde municipais atendem todo o tipo de doentes. A maioria dos casos são resolvidos ali mesmo - o posto de Imbé tem equipamentos de raio-X, e os exames de sangue são feitos por um laboratório local, num tempo médio de um hora. Se for necessário um especialista, é marcada uma consulta, que pode ser num dos postos do município ou, dependendo da complexidade, num hospital de Porto Alegre. Nesse caso, caminhonetes da prefeitura levam os pacientes e os trazem de volta. Geralmente uma van sai de manhã e volta no início da tarde, e outra sai à tarde e volta à noite.
Os pacientes internados são transportados de ambulância.  Em cada região há hospitais de referência para exames, cirurgias e tratamentos sofisticados. Exemplo: em Osório há, no hospital São Vicente de Paulo, uma clínica de hemodiálise. Doentes renais de toda a região - Mostardas, Tavares, Cidreira, Pinhal - fazem seu tratamento lá. São trazidos em carros ou ambulâncias da prefeitura. O hospital de Tramandaí recebe acidentados e doentes graves do Litoral na sua emergência e UTI, inclusive neonatal, e está equipado para vários tipos de cirurgias.
Ninguém paga nada por isso. Toda esta complexa estrutura, chamada pejorativamente de ambulancioterapia,  mas que funciona, é custeada pelo Sistema Único de Saúde, o SUS. O médico Dráuzio Varella qualificou o SUS como a maior revolução da história da medicina brasileira. 
Quem conhece o sistema só pode concordar. 




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Nos quartos de hospitais ninguém pode ficar sem acompanhante. Se o doente é internado sozinho ou trazido por uma viatura da Brigada Militar, em caso de acidente ou ocorrência policial, o Serviço Social da prefeitura entra em ação até achar algum parente ou amigo que se responsabilize por ele. 
Nos hospitais mantidos pelo SUS, como o de Tramandaí, administrado pela Fundação Hospitalar Getúlio Vargas, os acompanhantes são chamados de cuidadores. Além de fazer companhia para o doente, eles assumem tarefas da equipe de enfermagem:  ficam atentos às   mudanças no seu estado, controlam o nível dos medicamentos intravenosos, ajudam a fazer a higiene. Buscam ajuda se for necessário. 
Com o passar dos dias - e noites -, se tornam conhecidos do pessoal da enfermagem e dos companheiros de quarto - quase todos têm duas ou três camas. Como não podem dormir, se acomodam nas suas cadeiras de praia, trazidas de casa.  Podem ser identificados na entrada do hospital pelas sacolas com cobertores e travesseiros, além da aparência cansada.  
Quase sempre os cuidadores são maridos,  esposas, irmãos,  filhos ou netos dos internos.  Quem pode recorre a profissionais, que cobram em média R$ 100,00 por turno de 12 horas, mas isto é raro. 
Nas famílias unidas e/ou numerosas, a escala é dividida entre muitos. Mas o normal é que o encargo "recaia" sobre poucos, ou apenas um familiar,  como o caso de uma moça que ficou ao lado do pai por mais de um mês,  no hospital de Tramandaí, dormindo algumas horas por noite num colchonete. 
Na rotina de ir de casa para o hospital, dia após dia, eles abrem mão de suas vidas particulares, do trabalho, do lazer, do descanso. 
Sua única recompensa por noites e dias de vigília é penas uma: a gratidão de quem só pode contar com eles, numa hora em que não faltam desculpas para fugir de algo que deveria ser um dever moral ou apenas boa vontade: cuidar de um familiar doente.


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Eles se encontram todos os dias, duas vezes por dia. São familiares de internados na UTI, à espera do horário da visita. Ansiosos, nervosos, alguns choram. Trocam informações sobre os internados, e nos dias seguintes acompanham a evolução do tratamento de cada um - melhorou um pouquinho, está na mesma, vai passar para o quarto. Cria-se uma corrente fraterna, cada um tentando encorajar o outro. 
De um dia para outro uns somem - por alta ou falecimento - e outros chegam. 
Neste grupo ninguém é permanente,  ninguém pergunta nome, sobrenome, profissão. 
Permanentes, apenas, a ansiedade, o nervosismo, o desespero. 
E, às vezes, o alívio, a alegria. 

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A primeira sessão de hemodiálise do hospital São Vicente de Paulo, de Osório, começa às sete horas. Meia hora antes os pacientes começam a entrar no longo corredor e se sentar nas cadeiras colocadas ao longo das paredes.  Quase todos caminham com muletas, andadores  ou apoiados em acompanhantes. Alguns chegam de macas, trazidos por ambulâncias. 
Além de moradores do município, a clínica de hemodiálise recebe pacientes de toda a região - Tavares, Mostardas, Pinhal, Cidreira, Tramandaí, Itati, Maquiné. Mas apesar de virem de cidades diferentes, todos se conhecem, pois se encontram ali três vezes por semana. Cumprimentam-se uns aos outros, e saúdam as enfermeiras chamando-as pelos nomes, com a intimidade de velhos amigos. Depois, silenciosamente, entram nas salas onde, por três ou quatro horas, máquinas filtrarão o seu sangue, substituindo os seus rins. 
Antes das onze horas começam a chegar os pacientes do segundo turno. O encontro dos que chegam com os que estão saindo é marcado por conversas rápidas e descontraídas. O corredor se enche de vozes e algumas risadas. O tratamento criou entre eles um vínculo de companheirismo. Todos sabem que tem poucas chances de sobreviver sem aquelas sessões de diálise - conseguir um transplante de rim é quase como ganhar numa loteria. Sabem também que a máquina não substitui o seu órgão paralisado, e pouco a pouco eles vão definhar, com as articulações e outras partes dos seus corpos afetadas. 
Mas, para eles,  aquele não é o corredor da morte, e sim da vida.

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Nesses 50 dias em que estive todos os dias no Posto de Saúde do Imbé e no hospital Tramandaí acompanhando o meu cunhado Leoncio Lobato Neto, falecido na noite de domingo, 29/4/2018, aumentou meu respeito e admiração pelo profissionalismo e dedicação dos médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem para com os doentes. 
Um exemplo: a Duda, técnica de enfermagem encarregada da hemodiálise na UTI do hospital Tramandaí, notou que o Leôncio estava muito tenso. Perguntou para mim se ele gostava de música e que tipo de música. Falei nos Platters, e ela buscou no seu smartphone. Em segundos achou a música "Only You". Ele relaxou.
Mesmo estando no isolamento da UTI, pode continuar ouvindo suas músicas, que gravei num pen drive, com a autorização dos médicos.
Naquele ambiente branco e silencioso onde o limite entre a vida e a morte é muito tênue, os médicos, enfermeiros e técnicos foram sempre cordiais com os parentes e amigos dos doentes, dando informações sobre o estado de saúde deles.
Obrigado a vocês, que se dedicam a aliviar o sofrimento dos seus semelhantes.








6 comentários:

Lili® Rampon disse...

Me emocionei lendo a sua postagem Clóvis!
Não concordo com tudo que registraste nela... Meu pai, pouco antes de falecer, ficou internado por mais de 60 dias no Clínicas pelo SUS (visto que apesar de nossa insistência, nunca concordou que fizéssemos um plano de saúde para ele... Respeitávamos a vontade dele, do que muito me arrependo, pois talvez ele ainda estivesse conosco caso tivéssemos desconsiderado esta ogeriza pelos convênios!
Enfim, aqui em Porto Alegre a realidade do Sus talvez seja diferente...
Durante o tempo em que o pai esteve no quarto (ele teve duas passagens pela UTI no período de internação) Minha família (eu, minha mãe e meu irmão) nos revezamos como cuidadores e não houve um dia em que não acabássemos ouvindo algum comentário absurdo da assistentes de enfermagem!
Melhoras para sei cunhado! Beijao

Clovis Heberle disse...

Pois é: o meu relato é sobre o que eu tenho vivido aqui no Litoral. Se estivéssemos em Porto Alegre a situação certamente seria outra. Sinto pelo teu pai. beijo

Unknown disse...

Maravilhoso primo!

Unknown disse...

Oi Clóvis, é a Duda, em nome de toda equipe, venho te agradecer e dizer q me sinto feliz por de alguma forma ter ajudado no tratamento do seu Leôncio... lamento pela perda dele, e por ter presenciado junto com a lais os últimos minutos de vida dele, parece q ele só esperou ela chegar e rezar uma ave Maria... Eu infelizmente nada podia fazer, vim embora mto triste naquela noite, preocupada com vcs. Tenho sentido muita falta de vcs la... abre a vizita e tenho a sensação q vcs vão entrar. Um grande abraço a vcs, e parabéns por terem dedicado todos aqueles dias de cuidados, tanto amor e carinho deram ao seu Leôncio, ele ficava mto feliz e se sentindo amado...
Fiquem com Deus, saúde, paz...

Clovis Heberle disse...

Duda,

A tua tranquilidade e simpatia eram sempre confortadoras naquela UTI onde só se via dor e sofrimento.
Quis o destino que você estivesse junto da Lais, a sua irmã mais próxima, nos instantes finais da vida do Leôncio, a quem tantas vezes transmitiste o teu bom astral.
Nada nesta vida é por acaso.
Muito obrigado pelo teu carinho
Lais e Clovis

Ricardo Azeredo disse...

Excelentes relatos Clóvis, com a objetividade e sensibilidade de quem conhece uma boa história. Um abração!