domingo, 22 de julho de 2012

O PORTO DO RIO GRANDE











Olhem o mapa do Brasil: o litoral é todo recortado, desde o Cabo d'Orange, na foz do rio Oiapoque,  no Amapá, até Torres, na divisa de Santa Catarina com o Rio Grande do Sul. 
Do rio Mampituba para o sul é um costão de areia, que vai até o Uruguai.
De 1500, quando o Brasil foi descoberto, até o início do século 20, atravessar a barra do Rio Grande, na cidade de Rio Grande, extremo sul do Brasil, único acesso dos gaúchos ao oceano Atlântico, era uma aventura arriscada. De um lado, a Lagoa dos Patos mudava de humor de acordo com o volume de água que recebia das dezenas de rios que a formam e da lagoa Mirim, ora cedendo espaço para o mar, ora  forçando passagem para desaguar. De outro, os ventos fortes mudavam a todo momento os bancos de areia, alterando o leito do canal. Os navios tinham que esperar o dia certo para tentar a passagem, e muitos encalhavam na tentativa de chegar até terra firme. Nem porto havia em Rio Grande: a sua construção só começou em 1869.
 Restava, para os produtores e comerciantes de charque, lã e outros produtos, duas alternativas para chegar aos mercados consumidores do Brasil e do exterior: as trilhas através dos campos de Vacaria  - a ponte ferroviária de Marcelino Ramos, na divisa com Santa Catarina, ligando o Rio Grande do Sul ao Brasil, só foi inaugurada em 1913 - ou o porto de Montevidéu, no Uruguai. 
Além da proximidade geográfica, transportar produtos até a capital uruguaia tinha uma logística irresistível: atento ao problema dos vizinhos brasileiros, em 1884 o governo uruguaio decidiu construir linhas de trem de sua capital até cidades da fronteira limítrofes a Santana do Livramento, Quaraí, Jaguarão e Bagé. Não foi por acaso que, em 1917, a indústria de carnes norte-americana Armour instalou um frigorífico em Santana do Livramento. Pelos trens uruguaios também chegava quase tudo que era importado pela Província de São Pedro, legal ou ilegalmente - o contrabando pela fronteira seca era uma instituição reconhecida e até aceita pelas autoridades, impotentes para coibí-lo.

                                Molhes da barra de Rio Grande. Mais fotos em http://clovisheberle.blogspot.com.br/2011/02/ao-mar.html 



O desafio de desobstruir a barra começou a ser encarado em 1883, quando o governo Imperial criou a Comissão de Melhoramentos da Barra do Rio Grande. No final daquele ano, a comissão apresentou um projeto que previa a construção de dois molhes de pedra mar adentro. O projeto sofreu reparos, propostos pelo engenheiro holandês Peter Caland, chefe das obras hidráulicas da Holanda, e foi aprovado pelo Poder Legislativo em 1886. Pela lei, a empresa contratada através de concorrência pública receberia a garantia do pagamento dos juros de 6% ao ano pelo capital empregado nas obras e o direito de explorar o porto por 70 anos.
A Societé Anonyme Franco-Bresiliène ganhou a concorrência em 1888.
No ano seguinte, deposto o Império e proclamada a República, um decreto do novo governo confirmava os termos do contrato, por decisão do ministro da Agricultura, o positivista gaúcho Demétrio Ribeiro. Só que Ribeiro ficou no cargo por apenas 15 dias, vencido pelo liberal Ruy Barbosa. Um ano depois, uma solenidade marcou o início das obras, mas não passou disso. A empresa franco-brasileira usou todos os artifícios para retardar os trabalhos, pois o ambiente era de total insegurança: retração na economia mundial, rivalidade entre os dirigentes do país, liberais, e os do Rio Grande do Sul, positivistas. 
Na Província, a profunda crise política acabou deflagrando a Revolução Federalista (1893-1895), uma tentativa de derrubada, pelas armas, dos pica-paus de Júlio de Castilhos, no poder,  pelos maragatos de Gaspar Silveira Martins.
Em 1893, o contrato com a "societé" foi rescindido, e as obras da barra voltaram para a administração direta. Com recursos escassos, tanto no governo federal quanto no estadual, pouco foi feito até a virada do século.
O presidente Rodrigues Alves, em 1904, iniciou um programa de obras públicas para o reerguimento do país, com investimentos em portos e ferrovias. Desta vez os positivistas gaúchos, agora liderados por Borges de Medeiros (Júlio de Castilhos havia morrido em 1903) estavam afinados com o governo federal: o país precisava do carvão das jazidas da região de São Jerônimo, a 60 quilômetros de Porto Alegre, para mover as suas locomotivas, e de um porto para levá-lo até Santos e Rio de Janeiro. Enquanto isso, os dirigentes do estado sonhavam com o ideal castilhista de um sistema de hidrovias e ferrovias eficiente para o transporte de mercadorias das regiões produtoras até Porto Alegre e dali a Pelotas e Rio Grande, para finalmente acabar com o isolamento comercial da Província.
A vontade política do governo Rodrigues Alves abriu caminho para empreendores norteamericanos, entre eles Elmer Corthell, especialista em obras hidráulicas, responsável pela fixação da barra do rio Mississipi. Corthell, representado no Brasil por Ramiro Barcellos,  repassou a concessão ao compatriota Percival Farquhar, misto de empresário e aventureiro, responsável pela construção da polêmica ferrovia Madeira-Mamoré, em Rondônia.
Autorizada a funcionar em 1907, a Port of Rio Grande do Sul, de Farquhar, não conseguiu, no entanto, recursos para bancar a obra junto a investidores norte-americanos, como previa. Teve que recorrer a banqueiros franceses, que para assumirem os custos, exigiram uma mudança no contrato: em vez de receberem o equivalente aos juros de 6% ao ano em títulos da dívida pública, passariam a receber em ouro.
Aceita a exigência, a Compagnie Française du Port de Rio Grande do Sul iniciou as obras de abertura da barra e construção do porto . Os molhes foram concluídos em 1915, com quatro quilômetros de extensão e calado de seis metros.
Mas este ainda não foi o capítulo final: em 1919 o governo do Estado, presidido por Borges de Medeiros, decidiu encampar a barra e o porto, pois as altas tarifas cobradas para remunerar o capital empregado pela Compagnie Française tornavam caríssimo o uso do porto gaúcho.  Mas o custo da encampação  foi tão alto que o Estado mergulhou na maior crise financeira de sua história e causou a derrocada do castilhismo.




Esta história fascinante é contada com riqueza de detalhes e farta documentação no livro "A Abertura da Barra do Rio Grande", de Miguel Frederico do Espírito Santo, publicado em 1982.
Procurador de Justiça aposentado, penitenciarista renomado e presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul,  o autor fez um  trabalho de pesquisa profundo que resultou numa obra rara, premiada no Concurso Regional de História promovido pelo BRDE. O livro de 70 páginas pode ser comprado pela internet em sites de vendas. 










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