"A cidade tinha a graça de uma adolescente de boa estirpe. Atavia-se com simplicidade a cada despertar e a cada pôr-de-sol. Durante a jornada, misturavam-se as galas da natureza com a técnica do homem, em proporções harmoniosas.As noites ainda eram silenciosas e longas. A segurança não postulava aldrabas. Podia vagar-se sem medo pelas ruas e podia meditar-se sem pressa na quietude dos gabinetes."
Paulo Barbosa Lessa(1924-2008), advogado e professor de Direito, descrevendo a Porto Alegre da década de 1940
A praça da Alfândega, com o portão central do cais do porto ao fundo
Porto Alegre cresceu e se tornou capital da Província de São Pedro por sua excelente localização: era ponto de chegada e partida de quem navegava pelos cinco rios que desaguam no rio Guaíba, e por quem buscava a saída para o mar pelo porto de Rio Grande, na Lagoa dos Patos.
No século 20, ferrovias e rodovias foram construídas, o Rio Grande do Sul se industrializou, a capital cresceu e se modernizou. Se tornou conhecida como Cidade Sorriso. Em seu porto atracavam navios vindos de todo mundo, e era possível embarcar num Ita para o Rio de Janeiro ou para as capitais nordestinas.
Barcos subiam e desciam os rios Jacuí, Taquari, Caí, Sinos e Gravataí com cargas de todos os tipos. Comprar laranjas, bergamotas e produtos da colônia na Doca das Frutas era tão costumeiro quanto percorrer o Mercado Público em busca de peixes, carnes e tantos outros produtos. Bem perto dali havia lojas, joalherias, bares, confeitarias e cinemas - Ópera, Imperial, Guarani, Carlos Gomes, Cacique. Era uma festa. As garotas se produziam para percorrer a rua da Praia - o "footing" fazia parte dos hábitos dos portoalegrenses.
Os bondes interligavam o centro aos arrabaldes: Navegantes, São João, Floresta, Auxiliadora, Petrópolis, Partenon, Glória, Teresópolis, Menino Deus. Uma linha circular ia pela rua da Praia até o Gasômetro e voltava pela avenida Duque de Caxias.
No início da década de 70, foi preciso optar. Extinguir os bondes e substituí-los por ônibus, movidos a óleo diesel? Preservar os prédios construídos nas útimas décadas ou botá-los abaixo para a construção de edifícios, transformando o Centro numa selva de concreto?
Felizmente a população, os vereadores e os prefeitos não cederam às pressões dos espertalhões, dos especuladores imobiliários e de todos aqueles que só viam os seus interesses econômicos.
A maior vitória do espírito público ocorreu quando surgiu um projeto de proteção contra as cheias do Guaíba e evitar o que acontecera em 1941, quando as águas invadiram a parte baixa ao longo da zona portuária. Fruto de uma mente megalomaníaca, pretendia a construção de um muro
de concreto com portões hermeticamente fecháveis ao longo da avenida Mauá. Foram levantadas dúvidas sobre a eficácia do sistema - houve quem argumentasse com a velha e boa lei dos vasos comunicantes, pois se as águas subissem até as bordas do cais, entrariam também pelos canos de esgotos e pelo arroio Dilúvio para invadir o outro lado do muro. O argumento definitivo para a sua rejeição foi de que o muro separaria definitivamente a cidade do seu rio.
Daí para a frente, o bom senso prevaleceu. A navegação fluvial passou a ser valorizada. Velozes Aliscafos semelhantes aos que ligam Montevidéu a Buenos Aires substituíram os barcos a vapor para o transporte de passageiros entre Porto Alegre e Rio Grande, com escalas em todas as cidades do trajeto - Guaíba, Barra do Ribeiro, Tapes, São Lourenço e Pelotas.
Quanto ao muro: os recursos para a sua construção foram usados num projeto de canalização e tratamento dos esgotos cloacais, que reduziram a poluição das águas do Guaíba. O arroio Dilúvio voltou a ter águas cristalinas, e suas margens serviram para ciclovias.
No verão, as belas praias do Guaíba eram uma opção para aqueles que não queriam ou não podiam ir até o Litoral. O entardecer tinha um encanto especial com a urbanização de toda a orla do rio. O trecho do porto entre o portão central e a Usina do Gasômetro, transformado numa área de lazer, ganhou bares, cinemas, teatros e restaurantes.
Quando as construtoras passaram a demolir os antigos casarões do centro histórico, houve um movimento pela sua preservação, com o apoio dos jornais, tevês e rádios.
Enquanto as outras capitais brasileiras extinguiam os bondes, tapando seus trilhos com asfalto para a passagem de carros e ônibus, a capital gaúcha não só manteve o serviço, como o integrou aos ônibus dos bairros mais distantes e dos municípios vizinhos. Em cada fim de linha dos bondes foram construídas estações de transbordo. Com a prioridade a um transporte coletivo de qualidade e baixo custo, que mais tarde incluiu um metrô para a região metropolitana, foram abandonados projetos de viadutos e túneis destinados a facilitar o acesso de carros ao centro, já que isto só traria mais poluição, mais transtornos. Em vez de carros, pedestres, bicicletas e bondes nas ruas. Porto Alegre se manteve como era até os anos 60: charmosa, limpa, agradável.
A Cidade Sorriso.
* Esta fábula é uma homenagem a Leandro Telles, que por duas décadas lutou, junto com alguns poucos sonhadores, pela preservação dos prédios históricos da cidade. Obstinado, percorria as redações denunciando a destruição dos velhos casarões da área central para a construção de edifícios, mesmo que muitas vezes fosse recebido pelos jornalistas com indiferença e até com má vontade.
Num dos episódios mais conhecidos de sua militância, enfrentou pároco da capela do Bom Fim que anunciara a sua demolição. Com o apoio dos moradores do bairro, o templo acabou sendo restaurado.
Hoje Leandro se dedica apenas ao seu estande no Brique da Redenção.
Eu adoro Porto Alegre, mas a cidade está mal administrada há tanto tempo que virou um inferno para os moradores. As pessoas em geral estão mal-humoradas e agressivas; o trânsito flue, mas todos acham que tem preferência; a polícia sumiu, fora nos arredores do shopping total, onde tem vários por quadra, depois das mortes ali ocorridas. E as margens do Guaíba? Tudo abandonado, sujo, as margens do Guaíba moribundas. Fico triste pela minha cidade. Ninguém mais sorri. Não somos mais alegres.
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ResponderExcluirPois é, quando eu vim morar em Porto Alegre, em 1963, ela era a Cidade Sorriso. No verão Ipanema era uma festa, não era preciso viajar até o Litoral. Eu adorava pegar os bondes, ir até o fim da linha e voltar para conhecer os bairros. A gente caminhava pelo centro todo com prazer. O pior é que a situação não precisava chegar onde chegou. Uma pena.
ResponderExcluirHoje o site do Prévidi publica a minha crônica e acrescenta fotos da orla do Guaíba, imunda. Confere em http://previdi.blogspot.com/
Eu me lembro de ir com meus tios navegar de caíque por Pedra Redonda e Ipanema, costeando o Morro do Sabiá, muitas vezes sózinho; também pescar e comer os peixes do Guaíba. Nadávamos felizes da vida no lago, sem saber que era a última geração que viria a fazer isso. Triste Guaíba, triste Porto Alegre.
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